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tayane16

É desse processo ‘legal’ que saem os Odoricos Paraguaçus


Com a atenção da mídia nacional, alguns juristas e acadêmicos do país destacam o repúdio aos diálogos mantidos entre membros da Magistratura e do Ministério Público, reclamando a visível, incontestável e absurda violação do devido processo legal, haja vista que as conversas demonstrariam que aqueles teriam agido de forma absolutamente parcial, praticando uma ação estratégica direcionada para condenação, “custe o que custar”, abandonando o império da lei, a Constituição e os acordos internacionais.


Pois bem, evidente que ninguém discorda do valor da imparcialidade e da aplicação irrestrita do devido processo legal. Entretanto, causa certo estranhamento o fato destes mesmos juristas e acadêmicos, muitos dos quais com relações profissionais com réus da chamada operação Lava-Jato, terem mudando repentinamente de opinião. Especialmente no que se refere à obtenção da prova ilícita, consistente em gravações obtidas de maneira criminosa por meio de hackers – diversa e opostamente de situações anteriores similares –, as gravações ilegais “ganharam ares” de rainhas das provas.


Aliás, são estes mesmos que agridem aqueles que ousam debater democraticamente o assunto, menosprezando e desqualificando quem ponderar outras possibilidades, fatos e fatores de bastidores determinantes aos acontecimentos. Justamente de onde se deveria esperar tolerância, respeito às ideias e à pluralidade, em nome da uma visão certa, absoluta e acabada, agridem e desqualificam, impossibilitando o espaço da fala e do debate.


Quem sabe até tenham realmente razão e não possamos falar da prevalência do devido processo legal no país. Quem sabe – pouco importando a forma como eventuais provas foram obtidas, o porquê e a mando que quem – existiu desde o início um complô entre magistrado e membros do MP, com o desiderato de condenar políticos inocentes e empresários honestos. De outro lado, se o crime organizado pode, inclusive, influenciar a construção e a interpretação do devido processo legal, como não considerar a possibilidade da construção de uma narrativa para a valorização da prova ilícita destinada a distorcer contextos, fatos e percepções? Notadamente, em um país onde a defesa irrestrita do devido e “infinito” processo legal sempre foi sinônimo de impunidade e de manipulação estratégica – esta sim – do “Estado de Direito”.


A prova obtida por meio criminoso, analisada a destempo, descontextualizada e valorizada com hipocrisia dantesca e falaciosa – notadamente por parte daqueles que atuam anos no sistema de justiça – me recorda o velho personagem televisivo da cidade de Sucupira. Poderia, neste contexto – sempre com suas frases prontas e afiadas –, afirmar o Coronel Odorico Paraguaçu: “Estas gravações salvadoras entrarão para os anais e menstruais de Sucupira e do país.”


Isso porque, a prova ilegal, obtida de forma criminosa, foi salvadora e bem realizada, na medida para “arrumar a casa” e deixar tudo como outrora. Até porque sempre existiram casos de corrupção banalizados no cotidiano de Sucupira, com propinas suculentas, superfaturamentos em licitações e honorários advocatícios muito bem remunerados. Branqueio de capitais, bens imóveis desviados para terceiros, casas, apartamentos, sítios e outras construções. Buscas e apreensões malsucedidas, queimas de arquivo, limpeza de computadores e vazamento criminoso de informações. Desvios de verbas, esquemas fraudulentos, assalto ao erário, uso indevido da coisa pública, roubo para partidos e políticos, quadrilhas, amigos, cupinchas e outros ladrões. Tudo isso, uma vergonha, circunstâncias aceitas por muitos cidadãos. Mas não importa, desde que o devido processo seja legal aos comparsas, sócios, familiares, amigos e membros da organização. Odorico Paraguaçu certamente diria para seus juristas e acadêmicos de estimação: “Vamos botar de lado os entranhamento e partir logo pros finalmente.”


Como se vê, vivemos uma crise do pensamento e a ditadura do “devido processo legal” esperado pela defesa, interpretando covenientemente as provas de maneira a sempre impedir a finalização ou impor a nulidade do processo. Os grandes problemas processuais, advirta-se, são criados propositalmente para obstaculizar ou impedir o seguimento do feito. Isso é possível dada a lógica que comanda nosso modo acadêmico de enxergar seletivamente uma nova espécie de “devido processo legal” irrestrito e infinito, nem que para isso tenha que distorcer a realidade e utilizar provas arrecadadas por organizações criminosas.


Temos uma crise do processo (i)legal que se manifesta no pensamento de muitos réus que são responsáveis pela criação de leis processais com o objetivo teórico de garantir o devido processo legal. Ainda que sejam inevitáveis erros e excessos por parte dos operadores jurídicos, fosse nossa realidade réus presos e condenados por seus atos, poderíamos compreender melhor o porquê da forma de funcionamento de todo sistema jurídico-processual brasileiro e, consequentemente, a atual reclamação em relação ao suposto desrespeito ao devido processo legal baseado – acredite-se – em gravações obtidas clandestinamente.


Meu esforço nas minhas ideias é tentar efetivamente pensar todas as possibilidades dos fatos e dos bastidores relacionados, direta ou indiretamente, com a chamada operação Lava-Jato. O problema é realmente o devido processo legal? O que está acontecendo com os Poderes constituídos e, notadamente, com aquele que deveria ser o guardião maior da Constituição? Para onde estamos caminhando? Claro que defendo o devido processo legal, mas vejo um sério risco na possibilidade de uma narrativa parcial e falaciosa imposta em nome dele que, de legal, nada possui.


Oxalá possamos debater todas as possibilidades, inclusive, as dos juristas e acadêmicos com patrocínios e outros tipos de compensação. Ver o sistema como um todo, não esquecer do processo, da prova ilícita, dos fatos e de toda corrupção endêmica que comanda o país. Quero tentar lutar por isso, a criação de um fórum universal de debates, onde se possibilite, democraticamente, a maturação de todas ideias e possibilidades, independente de interesses pessoais, ideologias ou outros desejos inconfessáveis. Com o direito ao delírio, como diria Galeano, caminhar é preciso. Apesar de tudo, das agressões e dos horrores ocasionados pela falta de liberdade de expressão nas redes sociais, prosseguir pensando é uma obrigação. Sou agora, em tempos de pandemia e de provas ilícitas salvadoras, ainda mais utopia: Utopia do processo, do legal, do direito, da responsabilização, de um mundo mais justo e com menos corrupção. Porque sonhar é preciso. Continuo, pois, com minhas ideias, vou prosseguindo insistentemente, ainda que acuado, recriminado ou cancelado por juristas, professores e causídicos de plantão. Perder se assim for, porém jamais desistir!


*Affonso Ghizzo Neto é promotor de Justiça, mestre pela UFSC, doutor pela Universidade de Salamanca e criador da campanha ‘O que você tem a ver com a corrupção?’.

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