É preciso código de ética para uso de cartões por governantes, sob pena de se distorcer seu uso e ocorrer abusos, escreve Roberto Livianu
Intensos debates têm sido travados nas últimas semanas em torno do uso do cartão de pagamentos do governo federal, mais conhecido como cartão corporativo da Presidência da República
O gatilho foi acionado depois de reportagens sobre o calhamaço de números obtidos pela agência de dados Fiquem Sabendo. A análise detida das informações mostrou que a fabricação de imagem pública de austeridade de Jair Bolsonaro (PL) não correspondia àquilo que era visto nos números do cartão corporativo presidencial, que acabou revelando os intestinos do exercício do poder nos últimos 4 anos.
Em reportagem com os dados iniciais verificaram-se gastos com camarão, bacalhau, carnes nobres e outros luxos, evidenciando-se que a imagem de simplicidade do pastel e do churrasquinho apresentada ao público nas aparições midiáticas eram artificiais para consumo nas redes sociais. Alimentos requintados eram adquiridos e pagos com dinheiro público por meio do cartão corporativo e consumidos longe das vistas da sociedade.
Começaram a circular quadros comparativos, evidenciando que em governos anteriores, podem ter ocorrido igualmente práticas abusivas, até porque o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) gastou valores maiores que o ex-presidente, especialmente com transporte. Entretanto, é digno de nota que o ex-presidente Bolsonaro enaltecia de forma enfática ser franciscano nas despesas, enquanto a análise dos gastos com o cartão corporativo por ele mostra uma realidade bastante diferente disto. Os dados mostram despesas expressivas em dias de motociatas, gastos em hospedagem em hotel de luxo no Guarujá, bem como gastos expressivos com padarias de valores altos num único dia.
É público e notório que as motociatas eram formas de agrupamento de pessoas em torno do ex-presidente para fortalecer sua imagem e preparar sua campanha à reeleição. Portanto, jamais deveria ser custeado por dinheiro público.
Antes de mais nada é fundamental enaltecer que tais despesas estavam irregularmente escondidas, ocultadas do público, soba alegação de colocar em risco a vida dos familiares e pessoas próximas ao ex-presidente. Diferentemente, do sigilo de 100 anos, também utilizado exaustivamente por Bolsonaro, previsto na LAI (Lei de Acesso à Informação) apenas para situações excepcionais que digam respeito à segurança nacional.
Nossa Constituição prevê a publicidade como princípio e, além disto somos signatários do pacto dos governos abertos que subscrevemos em 2011 ao lado de Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, África do Sul, México, Filipinas e Indonésia. Tal acordo nos impõe o dever de sermos paradigma mundial em matéria de transparência – exemplo internacional. Mas não temos feito a lição de casa, especialmente nos últimos 4 anos.
O cartão corporativo foi criado pelo ex-presidente FHC em 2001 com a finalidade de se fazer frente a pequenas despesas, percebendo-se que em cada mandato elas chegam a totalizar mais de R$ 30 milhões. No caso do ex-presidente Bolsonaro, por exemplo, de acordo com os dados revelados, gastou quase R$ 8,2 milhões por ano de mandato para as tais pequenas despesas.
Assim, merece aplauso a iniciativa de 18 de janeiro de tornar pública minuta de decreto (consulta pública) que regulamenta a nova lei de licitações, regulando o tema do uso do cartão corporativo presidencial, destacando-se pontos relevantes sobre a matéria. O dever de prestar contas, a necessidade de divulgar as despesas em site público nos termos da LAI e a impossibilidade de se executar despesas com itens de luxo.
Observo a necessidade, por ora ainda não contemplada, de estabelecer limite a quaisquer despesas tendo como recebedor o mesmo fornecedor na mesma data ou em datas sequenciais. Verificaram-se ocorrências desta natureza no cartão corporativo do ex-presidente, com sinais fortes de se tratar de despesas impróprias.
É necessário que tenhamos uma espécie de código de ética para o uso de cartões corporativos de governantes, sob pena de se distorcer seu uso e os abusos serem suportados indevidamente pelo patrimônio público e, consequentemente, pelos cidadãos. Parece-me razoável também estabelecer-se um teto anual de gastos, sob pena de transformar-se o cartão corporativo num verdadeiro parque de diversões all inclusive custeado pelo erário, o que é totalmente inaceitável.
Quanto ao uso no passado, em despesas que forem consideradas impróprias, devem ser promovidas as devidas responsabilidades pelo Ministério Público, não só no que diz respeito a Bolsonaro, mas aos anteriores e outros governantes, visando a prevalência do interesse público. É questão de respeito aos cânones republicanos.
Este texto reflete a opinião do autor
Leia a matéria acessando o link abaixo no Poder 360:
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