Embora seja árdua a tarefa de conceituar cientificamente a corrupção, em razão de sua natureza complexa, heterogênea e dinâmica, é inegável que se trata de um fato social total, com múltiplos fatores causais e cujas consequências geram efeitos em todos os setores da sociedade. Para a Transparência Internacional, corrupção é o “abuso de poder confiado a alguém para obtenção de ganho privado”, concepção simultaneamente simples e suficientemente abrangente para se inferir que, no Brasil, o cenário exposto é, há muito tempo, de corrupção sistêmica, endêmica e institucionalizada.
O enfrentamento à corrupção no Brasil se assemelha ao mito de Sísifo, personagem da mitologia grega, considerado o mais astuto dos mortais e que, após ofender os deuses, foi condenado a uma tarefa inglória: rolar uma enorme pedra de mármore até o pico de uma montanha, de onde ela sempre rolava de volta…
A cada pequeno passo anticorrupção que se dá adiante, o nosso já desequilibrado sistema de inter-relação das funções de poder (sistema de freios e contrapesos) contra-ataca com enormes saltos de retrocesso, com a agravante de que essa involução arrasta consigo todos os indicadores sociais, a legitimidade das instituições democráticas e a crença social em um ambiente mais íntegro.
Prova disso é encontrada nas pesquisas de opinião, que revelam um alarmante quadro de piora da percepção no cenário brasileiro. A TI já havia divulgado seu Índice de Percepção da Corrupção 2020, em que o Brasil apresentou queda da 106ª para a 94ª posição.
Mais recentemente, o país caiu da 4ª para a 6ª posição do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2021 – CCC, referente aos 15 países da América Latina e que se baseia em três principais variáveis de percepção da corrupção: capacidade legal; democracia e instituições políticas; e sociedade civil e mídia. Seguindo sua trajetória descendente desde 2019, desta vez o Brasil, ao lado do México, apresentou o pior desempenho dentre todos os países latino-americanos, perdendo 8% de sua pontuação anterior.
Conforme a pesquisa, na primeira categoria, houve queda de 9%, sobretudo em razão do enfraquecimento das agências anticorrupção nacionais, especialmente a Polícia Federal e o Ministério Público, notadamente pelo desmantelamento administrativo da Força Tarefa Lava Jato. Na segunda, a queda foi de 11%, atribuída à defasagem do estado das relações entre Executivo e Legislativo. Na última, apesar dos elevados níveis de polarização política reduzirem a mobilização de grupos sociais, constatou-se um aumento de 3% na qualidade da imprensa. Por fim, o relatório apontou o Poder Judiciário como uma das áreas críticas a serem monitoradas, destacando as decisões recentes do STF, que acabaram por beneficiar importantes personagens da corrupção nacional já condenados até em segundo grau de jurisdição, especialmente em decorrência do trabalho da Lava Jato.
Como se não bastasse tudo isso, sub-repticiamente, como sói ocorrer com as medidas de neutralização produzidas justamente por quem pratica os ilícitos, a Câmara dos Deputados, após deliberação em regime de urgência (8 minutos), aprovou, por 408 a 67 votos, o texto substitutivo ao Projeto de Lei n. 10.887/18, que revisa a Lei n. 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa.
Ao falso argumento de promover adequação à dinâmica realidade social e à jurisprudência, em contra-ataque aos órgãos de controle, o texto substitutivo apresenta inúmeros retrocessos anticorrupção, na contramão de todo o movimento internacional normativo e cultural que fortalece as medidas dessa espécie. Nada mais conveniente…
Em verdade, trata-se de ataque institucionalizado à maior conquista democrática no combate extrapenal à corrupção, feito às pressas e sob encomenda privada pelo Relator, sem o necessário debate democrático, que esfacela a tutela do direito fundamental à boa administração pública.
São exemplos desse despautério: eliminação da modalidade culposa de improbidade; exigência de dolo específico; revogação do art. 11 que trata dos atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública (a exemplo do nepotismo); redução dos prazos para conclusão das investigações; prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário (contrariando a recente jurisprudência do STF); redução dos prazos prescricionais e dos prazos para a conclusão das investigações; prescrição retroativa; a impunidade do agente que for absolvido criminalmente pelos mesmos fatos, mas sob qualquer fundamento; e o afastamento de improbidade no caso de divergência na interpretação da lei, baseada em julgados ou em doutrina, ainda que não pacificadas…
Se há unanimidade entre os estudiosos que é impossível extinguir a corrupção, reduzi-la é mais que necessário, é uma exigência republicana. No Brasil, essa necessidade de reação por parte das instituições de controle e da própria sociedade civil é urgente, por todas as frentes possíveis, para rolar essa pedra para além do cume da montanha, evitando-se que essas medidas de involução impliquem mais violações aos direitos fundamentais do que os já evidenciados pelo círculo vicioso de corrupção que solapa o desenvolvimento nacional. Afinal, desistir não é uma opção e, como imortalizou Martin Luther King Jr., “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.”
*Rodrigo Otávio Mazieiro Wanis, promotor de Justiça. Doutorando e mestre em Direito.
*Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção.
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