ROBERTO LIVIANU 11 JUNHO 2024 | 4min de leitura
A Câmara dos Deputados acaba de ressuscitar um projeto de lei, apresentado em 2016, que pretende proibir acusados presos de fazer delação premiada, assim como pretende as tornar secretas. Naquela altura, o governo da presidente Dilma Rousseff enfrentava a abertura de um processo de impeachment e o avanço da operação Lava Jato, comandada pelo então juiz Sergio Moro, atualmente senador pelo União Brasil.
O PL foi protocolado semanas antes da divulgação da delação premiada do ex-senador Delcídio Amaral, que provocou verdadeiro terremoto político em Brasília. Foi dito há 8 anos que a intenção da proposição teria sido impedir que réus presos pela Lava Jato delatassem para obter benefícios e evitar a divulgação de conteúdo atingindo o governo do PT, mas atualmente o cenário político se modificou e aponta para outra direção.
Mas vale lembrar que isso não passa de sofisma. Mais de 80% dos colaboradores da Lava Jato eram pessoas que estavam em liberdade e procuraram o Ministério Público voluntariamente para contribuir com o esclarecimento da verdade.
Infelizmente, temos notado a construção abundante de narrativas negacionistas da corrupção, que pretendem fazer de conta que todas as ilegalidades reveladas pela Lava Jato, assim como os acordos de leniência celebrados, não existiram. Teriam sido tal como uma miragem. Propõe-se permanentemente um revisionismo histórico, não obstante a enxurrada de evidências demonstrando os ilícitos cometidos por pessoas detentoras de expressivas parcelas de poder político e econômico.
Isso sem contar o sucateamento das leis anticorrupção, como a lei de improbidade, a lei da ficha limpa, a nova lei de abuso de autoridade e a PEC da vingança (esta, não aprovada) com o objetivo de garantir a impunidade por lei.
Enalteceu-se indevidamente a ideia de que a Lava Jato criou graves danos à economia do país à medida que agiu punindo os responsáveis pelos atos de corrupção diante das evidências apresentadas. Como se a atitude correta frente às evidências de corrupção fosse prevaricar e cruzar os braços.
É óbvio, que por parte do MP, a única atitude possível era promover as responsabilidades. Em especial, diante do disposto no artigo 5 da Convenção da OCDE, assinada pelo Brasil em 2001, que estabelece que não se pode deixar de punir a corrupção sob o argumento de que isso causa dano à economia.
Há duas questões cruciais graves afrontosas à Constituição e contidas na proposta que merecem extrema atenção.
Em 1º lugar, não se pode jamais estabelecer uma regra que crie direitos de forma discriminatória. É inadmissível que acusados em liberdade tenham a possibilidade de receber benefícios processuais se colaborarem com a Justiça e, ao mesmo tempo, proibir que os acusados presos usufruam desse mesmo direito. Isso fere o princípio da isonomia e a própria dignidade humana. Se se pretende resguardar os direitos da pessoa presa, jamais se pode fazer isso cerceando seus próprios direitos e benefícios processuais. Estamos diante de uma verdadeira aberração jurídico-processual.
Por outro lado, o projeto propõe a criminalização da publicização das colaborações premiadas, estabelecendo para tais condutas penas de 1 a 4 anos. Observe-se: publicidade é um princípio constitucional estabelecido no artigo 37 da Carta Magna. A transparência é um valor fundamental para a existência saudável do Estado em todas as suas nuances em um regime democrático.
Tal proposição, além de ferir o princípio constitucional da publicidade, obstrui o direito de acesso à informação e impede o livre exercício da imprensa. Assim, constitui-se em gravíssimo instrumento de natureza autoritária, de triste memória, que colocaria o Brasil no grupo de países que desrespeitam os ditames democráticos.
Não se deve esquecer que o Brasil é subscritor do Pacto dos Governos Abertos ao lado de Noruega, Grã-Bretanha, África do Sul, Filipinas, México, Estados Unidos e Indonésia e, por força dele, comprometido perante o mundo a ser padrão mundial em matéria de transparência. A delação premiada é um instrumento usado em larga escala em todo o mundo ocidental democrático, tendo sido essencial para o eficiente enfrentamento do crime organizado em geral, do crime do colarinho branco, dos cartéis e das máfias, como a italiana.
Nota-se que a manobra política em questão pretende a aprovação do projeto com urgência de votação, que significaria suprimir os necessários debates nas comissões da Câmara. Um verdadeiro ataque à liturgia democrática.
As comissões existem para amadurecimento, debate e diálogo de proposições. A urgência de votação deve ter lugar em situações extremamente excepcionais que a justifiquem. Uma mudança dessa natureza, tão grave, que importa em alteração tão profunda no roteiro processual penal, que foi aprovado pelo próprio Congresso em 2013, obrigatoriamente deve ser precedida de aprofundada discussão.
Nota-se de forma significativa, lamentavelmente, que muitas vezes os debates legislativos são pautados pela busca de mera acomodação oportunista de interesses, e não pela resolução dos conflitos da sociedade ou da pacificação dos conflitos sociais. Sem deixarmos de registrar que a própria lei 12.850 de 2013 deixa claro que não se pode condenar pessoa alguma apenas com base na palavra do delator, exigindo-se a prova de corroboração ou confirmação, sob pena de nulidade.
É inadmissível que o casuísmo tome conta das deliberações do Poder Legislativo, especialmente num campo de tamanha complexidade, sob pena de sacrificarmos o princípio dos princípios: o da prevalência do interesse público. Especialmente, porque diante de tão graves inconstitucionalidades, se fosse aprovado o projeto, o STF seria chamado a retirar a futura lei do mundo jurídico, exercendo seu papel, o que pode ser evitado.
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