Em 16 de outubro do ano passado, no dia seguinte à operação da Polícia Federal que encontrou exemplares da então recém-lançada nota de 200 reais entre as nádegas do senador Chico Rodrigues (DEM/RR), publiquei neste espaço um texto intitulado O lobo-guará encurralado: crônica de uma tragédia anunciada.
Naquela oportunidade, mostrei que as melhores práticas internacionais recomendam a restrição ao uso de cédulas de alto valor em razão da forte preferência do crime organizado pelas notas maiores, uma vez que favorecem o transporte e a ocultação de montantes mais altos, beneficiando indivíduos e organizações criminosas que movimentam dinheiro vivo, obtido em atividades como corrupção, tráfico de drogas, de armas, evasão de divisas e contrabando, cujas transações que são feitas fora do sistema bancário, preferencialmente com esses bilhetes.
Lembrei também que, por essa razão, representantes de mais de uma dezena de entidades dedicadas à promoção da integridade, dentre as quais Instituto Não Aceito Corrupção, Transparência Partidária e Transparência Brasil, reuniram-se com a diretoria do Banco Central em meados de 2019 para pleitear o encerramento da produção e a gradual retirada de circulação das notas de R$ 100. No entanto, pouco mais de um ano após afirmar que compartilhava dessa preocupação e que estudava tal possibilidade, o banco agiu em sentido contrário: criou a nota de R$ 200 e ainda impôs sigilo sobre documentos que teriam embasado a decisão.
Pois bem. Lamentavelmente preciso voltar ao tema, diante da situação esdrúxula que se configurou desde então.
Para tanto, é necessário recordar que a diretoria do Banco Central afirmou na coletiva de lançamento da nova cédula que a quantidade de dinheiro em circulação estava “adequada para fazer frente às diferentes demandas da população” e que a medida era apenas de uma “atuação preventiva” contra uma possível falta de numerário, em razão do aumento do entesouramento de papel moeda decorrente da pandemia.
Mas depois, ao responder à ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, em ação movida pelos partidos Rede, PSB e Podemos, o Banco Central mudou o discurso: disse que a emissão da nota de R$ 200 era uma necessidade urgente, sem a qual haveria grave risco para “o atendimento das necessidades de numerário para garantir o funcionamento adequado da economia e do sistema financeiro nacional”, uma vez que o aumento do entesouramento teria tornado inviável o pagamento do auxílio emergencial sem a nova cédula.
Ocorre, porém, que o benefício no valor de R$ 600 foi pago normalmente entre abril e agosto, e a nota de R$ 200 só começou a circular em setembro, depois que o auxílio emergencial já tinha sido reduzido para R$ 300.
Desde então, só 12% das cédulas que o próprio Banco Central afirmou que teria de emitir em 2020 foram postas em circulação. Ou seja, a autoridade monetária afirmou que sem a emissão de 450 milhões de novas notas em 2020, o que somaria R$ 90 bilhões, haveria grave risco de faltar numerário para pagar o auxílio emergencial. Pois bem. A última parcela do auxílio foi paga no mês passado e só 53 milhões dessas cédulas tinham entrado em circulação até 31 de dezembro.
Mesmo assim, o Banco Central afirmou recentemente que “o ritmo de utilização da cédula de R$ 200 vem evoluindo em linha com o esperado, e deverá seguir com novas emissões ao longo dos próximos exercícios”. Essa posição mais uma vez destoa das justificativas apresentadas à ministra Cármen Lúcia, quando a autarquia afirmou que (…) “eventuais novas aquisições de cédulas de duzentos reais de 2021 em diante deverão refletir a avaliação e a reavaliação do Banco Central para cada exercício sobre essa relação de equilíbrio entre os custos e riscos, operacionais e financeiros, associados ao processo de contratação e os benefícios estimados”.
Ora, com o provável fim do auxílio emergencial, o início da vacinação, a diminuição das incertezas sobre a atividade econômica e o rápido crescimento das transações digitais, acelerado inclusive pela pandemia e pelo lançamento do Pix em novembro, há clara tendência de queda na demanda por papel-moeda.
O Banco Central deveria, portanto, rever eventuais benefícios de seguir expandindo a base monetária com notas de R$ 200 diante do impacto negativo que isso certamente provocaria para os esforços de combate à corrupção e ao crime organizado.
Nesse sentido, vale lembrar novamente a decisão do Banco Central Europeu que interrompeu a produção de notas de 500 euros em 2018 por recomendação do Organismo Europeu de Luta Antifraude, depois que um levantamento do governo do Reino Unido estimou que 90% das cédulas de 500 euros emitidas no país estavam nas mãos do crime organizado. Ou o estudo do economista americano Kenneth Rogoff, que mostrou que embora as notas de US$ 100 concentrem quase 80% do valor total dos dólares em circulação no mundo, a maior parte delas é usada em transações ilegais.
Também vale reiterar que, se por um lado a expansão da base monetária com notas de valor mais alto pode facilitar a logística de distribuição de valores entre instituições financeiras, por outro também é certo aumenta a atratividade para quadrilhas especializadas em roubos a caixas eletrônicos e transportadoras de valores, o que é especialmente preocupante quando se verificam cada vez mais frequentes e aterrorizantes casos de roubo a bancos.
Diante desse cenário, a Justiça deveria proibir a impressão de novos lotes da nota de R$ 200 ou então fixar uma data limite para sua validade, que até pode ser vinculada à normalização do entesouramento ou mesmo à expectativa de vida útil da cédula. O processo, no entanto, está parado desde 31 de agosto, aguardando uma decisão liminar da ministra Cármen Lúcia, relatora do caso. Enquanto isso, o senador licenciado Chico Rodrigues deve retornar ao Congresso Nacional em fevereiro.
*Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil.
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