CAIO CÉSAR VIOTO DE ANDRADE* 26 SETEMBRO 2023 | 5min de leitura
Diferente do que nos é intuitivo pensar, a política é marcada por disputas não apenas em eleições ou em negociações entre o Executivo e o Legislativo, mas também por conflitos no interior da burocracia de Estado. Essas disputas podem ser entre políticos eleitos e órgãos burocráticos, bem como entre diferentes agências da administração pública que, muitas vezes, têm suas competências e atribuições sobrepostas e convergentes, conforme suas áreas de atuação. Na recente contenda entre Petrobras e Ibama, acerca da exploração de petróleo na região amazônica, ocorreram todos esses fenômenos: além das disputas entre a empresa estatal e o instituto fiscalizador, o debate também se deu entre a Presidência da República e o Ministério do Meio Ambiente. De qualquer forma, essas disputas e conflitos não são novidade na história.
O sociólogo alemão Max Weber, um dos percursores dos estudos sobre a burocracia moderna, coloca que os políticos competem não somente por votos, mas também no processo legislativo e na supervisão da execução das leis. Desse modo, a liderança é disputada também na burocracia, que, no tipo de dominação racional-legal, é o âmbito do exercício diário da autoridade. Assim, o sucesso eleitoral e legislativo pode não ter resultado algum, caso não se traduza em implementação administrativa. Entretanto, existe uma diferença de responsabilidade entre o burocrata e o político. O primeiro usa de suas habilidades a serviço de uma autoridade superior, sendo responsável por funções que lhes são atribuídas, seguindo as leis e regimentos, ou seja, agindo com previsibilidade e impessoalidade. O político, por sua vez, é inteiramente responsável pelo que faz, não podendo “repassar” sua responsabilidade, além disso, deve ser partidário e não impessoal e imparcial.
Desse modo, uma das funções dos diversos órgãos de Estado, sejam fiscalizadores ou reguladores, é justamente limitar a discricionaridade das decisões políticas, que devem obedecer à legalidade. Ou seja, em muitos casos, a burocracia serve como um mecanismo de limitação do poder daqueles que estão exercendo o governo. Exatamente por esse motivo existem carreiras de Estado, com estabilidade e independência, de modo que possam agir dentro da lei, mesmo que contrariem aos interesses políticos dos representantes eleitos. Essa é uma distinção básica entre políticas de Estado e de governo. Assim, ainda que um governo tenha seus projetos e preferências ideológicas, sua atuação deve respeitar determinados limites legais e administrativos.
No último quadriênio presidencial, principalmente diante do cenário de pandemia, vimos a importância da independência das agências de Estado e como, em última instância, elas podem fazer as políticas públicas funcionarem, a despeito de disfuncionalidades de um eventual governo. No cenário atual, o que se nota é um descompasso entre o modelo de desenvolvimento econômico pretendido pelo governo e determinados compromissos e agendas que ganham cada vez mais importância nacional e global, como é o caso das pautas ambientais e da busca por combustíveis e fontes de energia renováveis.
Ninguém pode negar a importância do petróleo nos últimos 150 anos, desde sua descoberta em meados do século XIX. No entanto, também não se pode esquecer que diversas crises mundiais e internas foram motivadas por flutuações no mercado petrolífero, como os choques do petróleo ocorridos na década de 1970. No caso brasileiro, esses eventos foram responsáveis pelo fim do chamado milagre econômico, na ditadura militar, o que acabou resultando na perda de legitimidade do regime. Da mesma forma, a crise do petróleo fez com que o governo do período, especialmente sob a presidência do general Geisel, criasse empresas estatais e aumentasse gastos públicos, o que redundou em endividamento e inflação, problema que começaria a ser solucionado apenas com o Plano Real, em 1994.
Além disso, tivemos recentes casos de crises na Petrobras, envolvendo acusações de corrupção e todas as consequências políticas e jurídicas do chamado escândalo do “petrolão”. Ainda, a Venezuela, país vizinho e sempre citado nas discussões políticas brasileiras, apesar de ser um grande produtor de petróleo, sofre com crises econômicas há anos, sem perspectivas de melhora. Levando esses fatores em consideração, vemos que a história nos mostra que a dependência excessiva de petróleo não é uma boa alternativa para alcançar um desenvolvimento sustentável tanto em termos propriamente econômicos quanto em termos ambientais.
Da mesma forma, as pautas ambientais, desde pelo menos a década de 1990, ganharam cada vez mais espaço na discussão pública, política e científica. Isso levou a debates e proposições sobre novas fontes de energia e novos padrões de consumo. Assim, ao pressionar para que a Petrobras explore petróleo na região amazônica, o governo sinaliza que suas preocupações econômicas são de curto prazo e que não há um compromisso consistente com a continuidade de políticas de Estado e com pautas globalmente pactuadas. Diante disso, a ação do Ibama demonstra não apenas a resiliência das instituições republicanas brasileiras, mas também o fato de que as preocupações ambientais não são supérfluas nem secundárias, mas devem estar no centro de um projeto de desenvolvimento econômico contínuo e sustentável.
*Caio César Vioto de Andrade, doutor em História pela UNESP-Franca, pesquisa história econômica e administrativa do Brasil republicano. Professor-monitor do Insper
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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