Por Beatriz Lopes de Oliveira*
03/04/2023 | 08h15
Muito se fala em efetividade da justiça, especialmente em um mundo pós pandemia, no qual a intensificação das relações entre as pessoas, entre elas e o Estado e entre Estados diversos, passou a demandar atuação cada vez mais proativa e colaborativa por parte das instituições como Judiciário e Ministério Público.
A adoção de soluções tecnológicas, como trabalho remoto, assinatura e julgamento virtual e análise de dados por meio de inteligência artificial, aumentou sensivelmente a produtividade dessas instituições, concretizando mudanças que parecem ter vindo para ficar. O mundo atual demanda um modelo de justiça ágil, resolutivo e cada vez mais virtualizado, para o fim de atender as necessidades da sociedade moderna.
Nesse contexto, no campo de combate à criminalidade que ultrapassa as fronteiras do nosso país, isto é, quando se trata de investigar e punir a prática de crimes transnacionais, não se admite retrocesso na utilização das ferramentas passíveis de serem empregadas para a obtenção rápida e eficiente de elementos de prova, especialmente quando conferem maior agilidade à investigação dos fatos e punição dos responsáveis. Há casos em que é necessário cooperar ou pedir a cooperação de outros países para que se obtenha acesso a depoimentos, documentos, informações pessoais de investigados, o que se faz por meio do que se denomina cooperação jurídica internacional. E o atual governo federal sinaliza a pretensão de restringir sensivelmente o modelo atual de cooperação.
Uma das formas atualmente possíveis de cooperação jurídica internacional no Brasil é a cooperação semidireta, pela qual os pedidos para obtenção de informação, como elementos de provas, são feitos por autoridades como o Ministério Público, a juízes ou outras autoridades de outros países por meio de "autoridades centrais" de cada Estado, que são os órgãos responsáveis pela coordenação e pelo trâmite dos pedidos de cooperação jurídica internacional.
Por força de convenções multilaterais ou acordos bilaterais já assinados, atualmente as autoridades centrais são o DRCI - Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Procuradoria-Geral da República (Ministério Público Federal). O primeiro é autoridade central na maior parte dos pedidos de cooperação, e a PGR, nos casos que envolvam cooperação com o Canadá, Portugal e os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, quando envolver pedido do Ministério Público.
Esse tipo de cooperação, utilizada pelo Ministério Público notadamente em investigações que envolvem organizações criminosas transnacionais, permitiu a quebra de sigilos bancários e a instauração de processos criminais que resultaram no ressarcimento de milhões de reais aos cofres nacionais, especialmente em casos envolvendo corrupção de agentes públicos.
Outra forma de cooperação jurídica internacional é a cooperação direta, sistema que vigora na União Europeia, na qual os pedidos para obtenção de informação, como elementos de provas, são enviados diretamente entre juízes ou membros do Ministério Público de países diversos, com passagem facultativa do pedido pela autoridade central. A União Europeia, por meio do Ato do Conselho de maio de 2000, estabeleceu que os pedidos de assistência jurídica e o intercâmbio espontâneo de informações serão elaborados por escrito e remetidos diretamente entre as autoridades de cada um dos 27 países membros.
A remessa direta de pedidos de cooperação entre autoridades, sem que necessariamente se passe pela autoridade central, agiliza a troca de informações, evitando a perda do direito de punir pela demora na passagem por diversos órgãos internos. Além disso, esse modelo evita o vazamento de informações e sua utilização indevida por terceiros, garantindo maior eficiência na investigação.
Atualmente, a tramitação dos pedidos no MPF é tratada pela Portaria Conjunta MJ/PGR/AGU nº 01/2005, subscrita à época pelo Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que reconhece a PGR como autoridade central nos casos de cooperação semidireta e destaca a possibilidade de cooperação direta.
Por essa razão, em atenção à disciplina já adotada no Brasil há mais de dezoito anos, não há razão para o Governo Federal pretender restringir a atuação do Ministério Público como autoridade central nos pedidos de cooperação indireta, ao pretexto de fortalecer o DRCI. Em verdade, seria imprescindível adotar amplamente o modelo de cooperação direta, disciplinando a facultatividade de passagem do pedido pela autoridade central.
Iniciativas voltadas a reduzir o campo de atuação do Ministério Público como autoridade central de pedidos de cooperação semidireta ou a impedir em absoluto a cooperação direta, configurariam evidente retrocesso ao atual sistema de combate ao crime organizado brasileiro, além de desafiarem o modelo de cooperação de vanguarda, em vigor em grande parte dos países europeus, apontados como modelos de excelência em investigação e punição de crimes graves.
É evidente que a cooperação internacional que resulte na obtenção de elementos de provas em matéria penal deve respeitar todos os princípios constitucionais que regulamentam o devido processo legal e outros postulados constitucionais, garantindo sobretudo segurança e transparência.
Por isso, no cenário atual de combate à macrocriminalidade, os esforços devem estar voltados não a arredar o Ministério Público da cooperação internacional, mas sim a promover regulamentação legislativa que garanta o uso adequado desse instrumento, o que certamente trará, ao lado de maior segurança aos investigados, maior eficiência às investigações que envolvam criminalidade transnacional.
*Beatriz Lopes de Oliveira, promotora de Justiça no MPSP, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e professora de cursos de graduação em direito (FMU) e de escolas de aperfeiçoamento funcional do Ministério Público
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
Kommentare