Pesquisa do Grupo de Estudos em Compliance do Direito FGV, em São Paulo, aponta o cenário da aplicação do modelo americano de declination no país
Integridade vem do latim integritate, significa a qualidade de alguém ou algo a ser integre, de conduta reta, pessoa de honra e ética | Pexels/Montagem/SBT News/Cido CoelhoFernanda Fischer30/04/2024 às 07h57Publicidade
* Integridade e Desenvolvimento é uma coluna do Centro de Estudos em Integridade e Desenvolvimento (CEID), do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC). Este artigo reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do CEID e INAC. Os artigos têm publicação semanal.
Continuando ao artigo da semana anterior, uma proposta interessante foi apresentada pelo Grupo de Estudos em Compliance da FGV Direito SP em pesquisa apresentada em fevereiro deste ano.
O modelo americano de declination:
O declination é uma espécie de discricionariedade das autoridades americanas de decidir não processar uma pessoa, física ou jurídica, envolvida de alguma forma em uma conduta ilícita.
Nos últimos anos, o Departamento de Justiça norte-americano (“DOJ”) e o órgão norte-americano correspondente à Comissão de Valores Mobiliários (“SEC”), com frequência crescente, resolvido alegações de violação ao FCPA com o declination.
O mecanismo ganhou força a partir de 2019, com a publicação da Política de Aplicação do FCPA (“FCPA Corporate Enforcement Policy”) que determinou que se presume apto a receber o benefício do declination a empresa que relatar voluntariamente as violações detectadas por seus controles internos, implementar medidas internas de remediação e restituir quaisquer ganhos indevidos.
A análise da maturidade das políticas, procedimentos e controles de compliance da empresa são considerados para determinar se ela corretamente agiu para prevenir, evitar e detectar possíveis irregularidades e, assim, ela estará apta a receber o benefício.
O declination não é simplesmente uma escolha de não processar. A decisão pelo declination é tornada pública e a empresa assume compromissos de aprimoramento de processos e restituição de eventuais danos.
Um exemplo que bem ilustra o instituto é o tratamento dado pelas autoridades dos EUA à instituição financeira Morgan Stanley e a um dos seus executivos na China em abril de 2012.
O caso envolveu um investimento imobiliário conjunto no distrito de Luwan, em Xangai, entre a instituição financeira dos EUA e uma entidade estatal que funcionava como o braço imobiliário do distrito.
As autoridades dos EUA acusaram o antigo diretor-geral da empresa na China, Garth Peterson, de conspirar para escapar aos controlos contabilísticos internos que a FCPA exigia que o Morgan Stanley mantivesse.
Embora o diretor tenha recebido severas sanções, as autoridades dos EUA optaram por não responsabilizar o Morgan Stanley por qualquer má conduta, apesar da existência de violações da SEC.
Isto ocorreu porque o programa de compliance do Morgan Stanley foi considerado adequado, tendo atendido às expectativas básicas de conformidade das autoridades policiais dos EUA no momento em que ocorreram as violações.
Elementos como
políticas vigentes e efetivamente aplicadas;
treinamentos periódicos aos funcionários e alta administração;
certificações do programa e (iv) plano de monitoramento foram destacados na decisão do chefe da unidade FCPA da SEC, que afirmou disse que o Morgan Stanley “fez todo o possível” para garantir uma conduta ética, demonstrando que o funcionário fora desonesto apesar desse esforço.
O Morgan Stanley conseguiu comprovar, ainda, que adotava um rigoroso processo de aprovação de pagamentos para prevenir suborno e due diligence extensiva nas transações, no entanto, as informações falsas do executivo levaram a empresa a não descobrir o esquema.
A decisão traz uma reflexão, destacando que a responsabilidade estrita pode não ser apropriada para uma corporação com um programa de conformidade robusto diante de um ato isolado de um funcionário.
Além disso, enfatiza que a rápida identificação e correção de falhas em um programa de conformidade são fatores considerados em sua avaliação.
Desafio para a adoção de instrumento semelhante no Brasil
O principal desafio para o desenvolvimento deste instrumento em nosso cenário pode residir no argumento de que, no direito sancionador brasileiro, não se admite discricionariedade da Administração Pública.
A atividade punitiva é realizada de acordo com critérios objetivos, porque o interesse público na punição é indisponível. Nos EUA, as autoridades de fato têm essa discricionariedade.
Entretanto, com a maior complexidade das relações econômicas e sociais, atualmente, os órgãos administrativos já adotam critérios discricionários para delimitar as hipóteses de sua atuação (assim como o princípio da obrigatoriedade da ação penal vem sendo mitigado dia após dia com os instrumentos negociais).
Tomo como exemplo a atuação da Comissão de Valores Mobiliários brasileira (“CVM”): o § 5º do artigo 11 da Lei nº 6.385/1976, incluído pela Lei nº 13.506/2017, permite à CVM, após análise de conveniência e oportunidade, com vistas a atender ao interesse público, deixar de instaurar ou suspender, em qualquer fase que preceda a decisão de primeira instância, o procedimento administrativo sancionador se o investigado assinar termo de compromisso em que se obrigue a:
a) cessar a prática das atividades ou atos considerados ilícitos pela CVM; e
b) corrigir as irregularidades apontadas, inclusive indenizando os prejuízos. Ora, eis o declination baseado na discricionariedade (conveniência e oportunidade) da CVM – demonstrando a possibilidade de sua extensão a outras autoridades administrativas.
Além disso, o arcabouço normativo presente nos artigos 20 a 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro traz elementos que permitem à administração pública sopesar as consequências de atos punitivos diante de circunstâncias, inclusive a contribuição e proatividade do agente privado para mitigação ou eliminação de danos – podendo suportar a isenção do sancionamento.
Destacamos os artigos 20 - traz que a motivação deve demonstrar a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas - e 22 – prevê que na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
Entendo que à luz do cenário normativo atual, a previsão da isenção da sanção prevista na Lei Anticorrupção, suportada por critérios claros e adequados, é possível (e recomendável).
A arquitetura normativa não dispõe de incentivos racionais para o investimento em programas de compliance efetivos, cuja consequência, para um ambiente de integridade corporativa, são sistemas pouco estruturados que não cumprem seu propósito de prevenir, detectar e remediar atos em não conformidade.
Em outras palavras, a redução máxima de 5% no cálculo da multa administrativa tão-somente não parece ser incentivo suficiente ao investimento robusto pelas empresas em medidas efetivas de compliance.
Além disso, a responsabilidade objetiva vulgarizada, sem análise do real interesse ou benefício obtido pela empresa pela conduta isolada de um representante acaba por dissuadir as empresas de investirem em medidas robustas – afinal o risco de corrupção nunca será zero.
Com a finalidade de se aperfeiçoar o ambiente de integridade corporativa no Brasil é necessário desenvolver uma racionalidade entre incentivos financeiros e sanções para permitir a aplicação adequada da Lei e a construção de uma cultura de integridade – o que entendo possível no cenário normativo sancionatório brasileiro, que já evoluiu nesse sentido.
A ideia de um instrumento que permita excepcionar-se o sancionamento às empresas por atos isolados de colaboradores, cujos resultados comprovadamente não correspondam à satisfação de interesse institucional, sendo-lhes oportunizado apresentar os controles adotados – que devem se mostrar efetivos -, além de outros critérios, deve ter maior atenção das entidades ligadas ao combate à corrupção.
* Integridade e Desenvolvimento é uma coluna do Centro de Estudos em Integridade e Desenvolvimento (CEID), do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC). Este artigo reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do CEID e INAC. Os artigos têm publicação semanal.
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