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A metástase d'alma

Por José Renato Nalini*

14/12/2022 | 05h00


A corrupção é um câncer que se propaga e contra o qual inexiste vacina. O mais trágico é a condescendência da maior parte da sociedade. Não se apercebe de que ocorre uma erosão da democracia e da economia com a crescente extensão e intensificação de condutas poluídas.


Sabe-se que a corrupção adentra a esferas relevantes do setor privado e dos governos. Ninguém ignora que as situações favoráveis ao seu desenvolvimento desenfreado são de múltipla índole, como o tráfico de drogas e de armas, infelizmente o de pessoas e também o de substâncias radioativas utilizadas na fabricação de armas atômicas. Outra modalidade bem conhecida é a lavagem de dinheiro, o crime organizado, que impregnou e domina várias esferas da economia e da política, tão entranhado está na administração pública.


Não se desconhece, ainda, que a crescente integração do comércio e dos mercados financeiros, de par com a disseminação das tecnologias da comunicação e informação, atuou de forma a globalizar o tema corrupção. Não há país que o não enfrente, mas quando não há democracia, ou está se ressente de falhas estruturais, isso significa fertilizante para as práticas abusivas.


No âmbito econômico, a corrupção distorce o funcionamento do sistema e aumenta os custos de produção, diminui a eficiência, discrimina entre os sujeitos econômicos e gera barreiras para o acesso aos mercados. Contribui para a intensificação dos conflitos sociais. Empurra vasta legião de seres inteligentes para a criminalidade e aí os faz permanecer.


Deletéria a consequência de se admitir corrupção no governo. Ela solapa os fundamentos do Estado democrático. Sua gestão se afasta do direito que deve ser o mínimo ético e deixa de existir segurança quanto à igualdade dos cidadãos perante a lei, apesar da enfática explicitação no texto fundante. Um gestor corrupto perde sua legitimidade democrático e estimula a cidadania a violar as leis e normas editadas pelo Estado. Os cidadãos cuidarão de atingir seus objetivos se valendo das vantagens que podem ser obtidas mediante o uso da corrupção.


Se existe corrupção em todos os países, o cenário é muito mais perturbador em nações de tardio desenvolvimento, aquelas situadas na periferia da civilização, diante de índices desabonadores dos resultados obtidos por seus governos. Por isso a missão mais desafiadora dos pensadores sensíveis a essa chaga, empenhados em alertar a população de que resignar-se a qualquer espécie de corrupção é aprofundar a iníqua desigualdade entre incluídos e excluídos e condenar o país a um estágio de inferioridade moral e política incompatível com o discurso moralizante acolhido na Carta Cidadã.


Penso que o trato normativo é insuficiente para inculcar na população o asco a ser devotado a qualquer espécie de prática indicativa de fuga a ditames impostos por uma ética irrepreensível. A educação que o Estado oferta ao educando é mero adestramento da capacidade mnemônica, alheio à formação do caráter, à construção de um indivíduo capaz de raciocinar e de criticar.


O resultado é a produção de massa amorfa, de cultura superficial e insuscetível de enxergar além das necessidades epidérmicas, desinteressada do destino comum formatado por políticos profissionais exclusivamente interessados na perpetuidade do exercício do poder.


Uma escola frágil, satisfeita com avaliações bimensais com vistas ao estabelecimento de um ranking entre as unidades da Federação, não se detém a alertar o educando quanto às ameaças que pairam sobre a democracia. Uma delas, e mais potente do que tantas outras, é a aceitação da corrupção como algo natural à espécie humana.


Tudo reforçado por uma consciência consumista, materialista e narcisista, própria a estágios civilizacionais que não superaram a pré-história da ética. Bem adequada a concepção de Cioran sobre o humano de nossos dias: "A fonte de nossos atos reside em uma propensão inconsciente a nos considerar o centro, a razão e o resultado do tempo. Nossos reflexos e nosso orgulho transformam em planeta a parcela de carne e de consciência que somos. Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. Mas viver é estar cego em relação às suas próprias dimensões".


A dimensão cívica de cada humano que vive em nação que se autodenomina democrática deveria impor um exercício contínuo e permanente: responsabilizar-se pela higidez da Pátria. O conceito de Pátria é inspirador para a adoção de tal atitude, pois é a união de todos. Absolutamente todos, numa visão abrangente, a considerar aqueles que já se foram, aqueles que são, aqueles que ainda virão.


Compromete-se o futuro dos nascituros quando se admite a prática indiscriminada, generalizada e consentida da corrupção. Não precisa ser aquela dos holofotes dos esquemas de segurança que agem posteriormente às práticas lesivas da economia, da democracia e da ética nacional. Mas as pequenas concessões feitas sob argumentos falaciosos e pueris - "todo mundo faz", "o que é que tem?", "foi pouca coisa", "não sou palmatória do mundo" - são sintomas de algo muito mais sério. Uma enfermidade d'alma incapaz de detectar um distanciamento dos mais elevados padrões morais. Algo que se assemelha, infortunadamente, a um verdadeiro câncer da alma. E quantas delas, neste nosso Brasil tão maltratado, já chegaram à metástase?


*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente do Programa de Pós-graduação da Uninove, mestre e doutor pela USP em Direito Constitucional


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

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