Cenário normativo que passará a valer em 2024 precisa de regulamentação, ainda que contenha iniciativas louváveis sobre sustentabilidade; avanço é desafiador, visto o alto grau de litigância no País em matéria de contratações públicas
Publicada em 2021, a Nova Lei de Licitações (NLCC), Lei Federal nº 14.133, está em seus últimos ensaios para se tornar obrigatória em toda a administração pública em dezembro deste ano. Foram duas prorrogações de prazo de vigência, refletindo a já conhecida dificuldade do Poder Público em operacionalizar mudanças legislativas estruturais. Como reflexo disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou recentemente a baixa utilização da nova lei nos certames.
Assim como sua antecessora, a Lei Federal nº 8.666/1993, a NLCC traz regras gerais paras as contratações públicas. Estados e municípios têm passado por importantes processos de confecção normativa para editarem seus próprios marcos sobre o tema, agora sob a égide da nova lei federal.
Além disso, servidores e administradores públicos precisam ser capacitados a partir das novas regras. Não bastassem os desafios operacionais clássicos, a NLCC inicia sua vigência sob novos contextos político, econômico e social: a era da preocupação e da urgência por soluções socioambientais, frente à negligência temática dos últimos 30 anos.
Nesse sentido, a quase falecida Lei Federal nº 8.666/1993 é um exemplo. Faz uma menção singela à sustentabilidade em seu art. 3º, trazendo entre os objetivos do processo licitatório a "promoção do desenvolvimento nacional sustentável". Quando pensamos em objetivos, a ideia imediata é uma meta para a qual se traçará um plano.
Ao longo de sua vigência, não foi isso o que se viu. O que era para ser uma meta, em verdade, foi dotado de tamanho grau de incerteza e abstração que passou a ser um princípio - reiteradamente esquecido pelos administradores e ocasionalmente lembrado pelos litigantes.
Agora, a NLCC parece inovar ao disciplinar melhor e abrir espaço para a criação de instrumentos visando dar efetividade à sustentabilidade socioambiental. Vemos que já na fase preparatória, que ganhou destaque na nova legislação, a obrigatoriedade do estudo técnico preliminar veio acompanhada do dever da administração pública contratante de descrever possíveis impactos ambientais e as respectivas medidas mitigadoras (art. 18, §1º, inc. XII).
O estudo preliminar é o documento capaz de "evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução". Assim, uma interpretação possível é que a melhor contratação será aquela que analise e mitigue impactos ambientais causados pela atividade contratada.
Mas não só de preparação viverão as contratações. Quando analisamos a fase de julgamento, lá está a questão sustentável novamente, com inspiração no Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que contém disposição idêntica (art. 19 da Lei Federal nº 12.462/2011).
O art. 34, §1º, da NLCC prevê que os julgamentos das propostas segundo os critérios de maior preço ou maior desconto e, quando couber, por técnica e preço considerarão o "menor dispêndio para a administração". No conceito de menor dispêndio estão incluídos os custos indiretos decorrentes de impacto ambiental, sempre que mensuráveis e "conforme disposto em regulamento". Há a necessidade de avaliação objetiva dos custos supervenientes relacionados ao "ciclo de vida" da aquisição, os quais se referem à manutenção, à utilização, à reposição, à depreciação e ao impacto ambiental do bem ou serviço adquirido.
O legislador optou claramente por condicionar a incorporação dos custos relacionados ao ciclo de vida do produto a ser adquirido via licitação à mensuração objetiva dos referidos custos, de forma a assegurar o menor dispêndio à administração.
A referida escolha se mostra justificável diante dos percalços com os quais se deparariam os gestores públicos diante da impossibilidade de se demonstrar objetivamente a economia traduzida na redução de custos indiretos, dentre outros elementos, ao impacto ambiental dos produtos. O apego à adoção de critérios objetivos em matéria de licitações se explica não só pela celeridade e objetividade almejados, mas sobretudo pelo fundado receio de responsabilização por órgãos de controle que relutam em aceitar a adoção de conceito abertos e flexíveis de contratação.
O que se questiona é se a exigência de demonstração objetiva da redução de custos indiretos atrelados ao ciclo de vida do produto acabará por tornar letra-morta o dispositivo, haja vista o nível de sofisticação da análise exigida, bem como a possibilidade de questionamento acerca da justificativa que vier a ser apresentada.
Com base no alto grau de litigância no País em matéria de contratações públicas, não seria difícil vislumbrar futuros pleitos anulatórios baseados na retórica do subjetivismo. Portanto, a regulamentação é de suma importância.
Ainda, há a necessidade urgente de um letramento da administração em sustentabilidade, tendo o contratante domínio dos aspectos de sustentabilidade que envolvam a aquisição e estando pronto para responder:
Quais são os impactos ambientais gerados pela contratação?
Quais são as medidas mitigadoras aplicáveis a esses impactos?
Como quantificar o menor dispêndio durante a vida útil do objeto licitado?
Como os licitantes poderão comprovar suas metodologias de mitigação de riscos ambientais e redução de custos durante o "ciclo de vida" do objeto ainda no processo licitatório?
A última questão abre um leque de opções acerca de certificações que poderiam ser apresentadas nos processos licitatórios. A exigência de certificação como critério de classificação tem se mostrado um porto seguro para os gestores públicos. Pois, ao exigir que uma entidade certifique o produto, o gestor estaria dispensado de realizar justificativa objetiva, mitigando o risco de questionamento da contratação.
A principal crítica que se faz à tendência de certificação é a validade formal, sem refletir ganho substancial da administração ou mesmo comprometimento por parte da entidade acreditada. Se a administração seguir esse caminho, quais serão as certificações exigidas?
Há, nesse sentido, uma grande complexidade na implementação da sustentabilidade como critério de julgamento. Mas não só, vemos que a Lei 14.133/2021 avança ao trazer a sustentabilidade ambiental como critério de pagamento nos contratos, eis que o seu art. 144 prevê a possibilidade de elaboração de cláusulas contratuais estabelecendo remuneração variável com base em critérios de sustentabilidade ambiental.
É evidente que essas iniciativas são louváveis, no entanto, carecem de regulamentação.
O cenário normativo alterado traz instrumentos que devem ser regulamentados e aplicados pela administração pública. Sob essa ótica, a lei não só oferece como obriga o uso desses instrumentos. Assim, a sustentabilidade não é um mandamento de otimização nem uma faculdade administrativa, é um dever-poder do Poder Público.
Há um reforço a essa obrigação no cenário econômico, pois os agentes privados têm se movimentado para buscar opções de investimento sustentável. Ao adaptar o modelo de contratações a essas preocupações, o Poder Público mantém-se nos holofotes do investimento.
Para que isso realmente ocorra são necessários esforços também ativos da administração pública. Não é mais possível, como demonstrou o TCU em sua recente pesquisa, que os entes federativos tentem fugir da aplicação da lei. O tempo agora é outro: o de profissionalização de servidores nas questões que envolvem o relacionamento entre a sustentabilidade e as contratações públicas. A necessidade disso é mais que urgente.
**em colaboração com Natalia S. Silva, advogada em Direito Público do KLA Advogados
*Integridade e Desenvolvimento é uma coluna do Centro de Estudos em Integridade e Desenvolvimento (CEID), do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC). Os artigos têm publicação semanal.
Comentários