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A persistente indistinção entre os interesses público e privado

Por Rodrigo Augusto Prando*

01/05/2023 | 05h00


A corrupção - no Brasil e no mundo - abarca uma multiplicidade de fatores, individuais e coletivos, institucionais e culturais, legais e históricos. Há, especialmente no Brasil, um elemento assaz importante, quase uma antessala para práticas de corrupção: a persistente indistinção de interesses privados e interesses públicos.


À direita, à esquerda, no centro político, não importa, somos, culturalmente, afeitos à dificuldade de se estabelecer a salutar fronteira entre público e privado, seja no exercício do poder político pelos nossos representantes eleitos, seja em relação a membros do serviço público, de carreira ou de cargos por indicação política. Até mesmo aqueles que trabalham na iniciativa privada que, nas relações com o Estado, buscam vantagens e distintas formas de atuar como agente corruptor que, por isso, aguarda o encontro com quem se dispõe a ser corrompido. Pode-se, à luz da literatura atinente às Ciências Sociais, encontrar farto material de leitura que versa acerca deste fenômeno em tela. Vejamos.


Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico "Raízes do Brasil" inicia o capítulo V - "O homem cordial" - aduzindo que o Estado não é continuidade do círculo familiar, em verdade, afirma que o Estado e família devem estar em lados opostos. O Estado dá conta de ações e interesses abstratos, gerais, com regras que devem conformar a todos os cidadãos, de forma impessoal. A família, por sua vez, apresenta interesses particulares, espaço de sociabilidade pessoal assentada nos afetos.


Para Holanda:


"O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos argumentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição".


Ainda para Holanda:


"No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo de família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização - que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera da influência da cidade - ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje".


Desta forma e como derivação dessa formação social:


"Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário "patrimonial" do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário "patrimonial", a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático [...]".


Décadas depois da publicação de "Raízes do Brasil", a obra "Homens livres na ordem escravocrata", de Maria Sylvia de Carvalho Franco, fruto de sua tese de doutoramento, em 1964, apresenta-nos, com riqueza documental, outros aspectos atinentes à indistinção de interesses públicos e privados. Em suas palavras:


"A exiguidade de recursos de que dispunha a municipalidade revela-se, sobretudo, nas frequentes declarações de impossibilidade de realização de reparos, muitas vezes, pequenos e urgentes, em obras públicas".


Por isso, segundo Franco:


"A carência quase completa de fundos públicos, nesse nível, encontrou uma forma de compensação que escapa de todo às medidas peculiares de uma ordem burocrática. A superação do impasse gerado pela expropriação das agências locais ocorreu através do apelo direto a patrimônio particular do cidadão comum e do próprio servidor público".


A consequência de tal prática é que:


"Essa mistura entre a coisa pública e os negócios privados fundamenta, sem dúvida, a extensão do controle pessoal a todo o patrimônio do Estado. A passagem é rápida: o homem que sustenta com recursos particulares as realizações próprias do governo está subjetivamente pronto para considerar como seu o conjunto de bens públicos confiados à sua guarda. Por que não o faria? Por que não satisfaria aos próprios objetivos com dinheiros do governo se, não raro, as dificuldades deste último eram resolvidas com haveres seus, pessoais? Acaba por constituir-se de fato, nessas condições em que ficam completamente fluídos os limites entre o que é patrimônio da Administração e o que é propriedade do administrador, um fundo de "bens comuns" cujos valores, indivisos entre os dois membros da associação formada, servem indistintamente ora um, ora a outro."


Poder-se-ia, aqui, alongar o artigo com outros autores, como, por exemplo, Raymundo Faoro ou Roberto DaMatta. Contudo, à guisa de conclusão, cabe trazer à tona, recentemente, fatos públicos e notórios que concentram essa famigerada indistinção entre os interesses públicos e privados. Já fora do poder, Bolsonaro volta a ser o centro das atenções, juntamente com sua esposa, por uma ação, sob investigação, de trazer ao Brasil joias presenteadas por um Chefe de Estado estrangeiro. Ficam, sempre, questões de suma importância: são presentes pessoais, particulares ou presentes para o Estado brasileiro que, naquele momento, era representado por Bolsonaro? Sendo presente pessoal deveria ter sido declarado e com o devido imposto recolhido; sendo presente oficial o trâmite seria a incorporação ao acervo público. Outro episódio é do Ministro da Comunicação de Lula, Juscelino Filho, que, segundo informações da imprensa, usou recursos públicos para asfaltar estradas em seu estado, todavia, estradas que, curiosamente, encontra-se nas proximidades de suas fazendas. Não faz muito, o mesmo ministro, utilizou-se - segundo consta já devolveu - recursos públicos como voo e hospedagem para um rápido compromisso oficial e, depois, participar de um leilão no qual ofertava seus cavalos de raça.


Nosso ordenamento jurídico já é bastante claro ao estabelecer o regramento para não apenas separar o público e o privado, mas, também, para organizar as ações no âmbito do funcionalismo público e dos atores político portadores de mandato. Leis existem. Existem, com força, no Brasil, "jeitinhos" e "malandragens", culturalmente aceitas e, não raro, estimuladas. Esse é o tema para um artigo vindouro.


*Rodrigo Augusto Prando, graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia, pelas Unesp. Professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi conselheiro do Instituto Não Aceito Corrupção

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica



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