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tayane16

A venda de serviços profissionais para viabilizar a grande corrupção


O que você faria se tivesse milhões ou bilhões de reais? Essa é uma pergunta recorrente (principalmente quando os valores em loterias se acumulam!) que mexe com a imaginação dos mortais aqui na parte de baixo da pirâmide socioeconômica – nós que perfazemos os 99%.


Mas e quando esse dinheiro todo é ilícito? Bem, nesses casos, junto com a pergunta “o quê?” vem a pergunta “como?”. Isso porque os corruptos, traficantes, terroristas e sonegadores precisam encontrar uma forma de “limpar” o dinheiro obtido ilegalmente ou o dinheiro que se quer esconder das autoridades tributárias.


É nessas horas que entram os intermediários – ou “enablers” no feliz vocábulo em inglês. Segundo o Cambridge Dictionary[1], “to enable” significa “to make someone able to do something”. Tradução: fazer com que alguém seja capaz de fazer algo. Em resumo: “possibilitar” ou “habilitar”.

No universo dos fluxos financeiros ilícitos, “enablers” são aqueles que vendem serviços profissionais para possibilitar a lavagem do dinheiro – tornar limpo um dinheiro sujo.

Sim, porque os grandes corruptos, os traficantes, os terroristas e os sonegadores não conseguem fazer isso sozinhos. Então eles contratam serviços profissionais: por exemplo, um advogado – para que este o ajude, por exemplo, a abrir uma pessoa jurídica em um paraíso fiscal. Ou então eles contratam um profissional do setor imobiliário – para que ele encontre uma forma de comprar, com dinheiro obtido ilegalmente, uma fazenda, um apartamento na França ou uma bela mansão aqui no Brasil mesmo.


Já faz alguns anos que a comunidade internacional entende que os fluxos financeiros ilícitos são um grande problema global. Tanto que uma das metas de um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, estabelecidos em 2015 para se alcançar em 2030, refere-se a esse desafio.


O objetivo número 16 (“Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”) tem doze metas[2], e uma delas é precisamente “reduzir significativamente os fluxos financeiros e de armas ilegais, reforçar a recuperação e devolução de recursos roubados e combater todas as formas de crime organizado” (grifo do autor deste texto).


Importante notar que em outubro de 2020 a ONU definiu o conceito de fluxos financeiros ilícitos, para fins estatísticos[3]. Em tradução livre, a definição é a seguinte[4]: “fluxos financeiros que são ilícitos na origem, transferência ou uso, que refletem uma troca de valor e que cruzam as fronteiras dos países.” O documento esclarece que tais fluxos devem ser compreendidos de maneira mais aberta, incluindo trocas de valores não-financeiros, para além de simples transferências bancárias. Além disso, a frase sobre cruzar fronteiras de países é explicada: o processo de compra, venda ou transferência envolvendo pessoas (físicas ou jurídicas) de nacionalidades distintas pode indicar fluxo financeiro ilícito, ainda que o ativo em questão – por exemplo, um imóvel ou um iate – nunca saia de um dado país.

Como se vê, esse não é um assunto exclusivo de bancos ou do sistema financeiro – e não precisa necessariamente envolver estrangeiros.


Normas e supervisão para os serviços profissionais “possibilitadores”


Com o objetivo de fortalecer o combate ao fluxo financeiro ilícito e ampliar as chances de alcançarmos os objetivos de desenvolvimento sustentável, as Nações Unidas criaram uma iniciativa chamada FACTI Panel, em que FACTI é o acrônimo em inglês para Integridade, Transparência e Responsividade Financeira Internacional, numa tradução livre. Em fevereiro a iniciativa publicou seu relatório[5], o qual traz 14 recomendações práticas.


A recomendação de número 6 aborda exatamente os “enablers” – isto é, os profissionais “possibilitadores” da lavagem de dinheiro. Os especialistas recomendam aí duas ações: a) o desenvolvimento de diretrizes globais para profissionais financeiros, jurídicos, contábeis e outros profissionais relevantes e b) a inclusão de tais diretrizes no arcabouço regulatório e de controle de cada país.


Nota-se que profissionais do mundo jurídico estão destacados na recomendação. A experiência internacional indica que alguns advogados já prestaram assessoria jurídica – em operações societárias, por exemplo — para sonegadores e criminosos em estratégias de colocação do dinheiro ilícito em estruturas e/ou em jurisdições secretas.


Nesse sentido, vai na contramão do debate internacional a decisão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) exarada em 13 de abril último no sentido de decidir que a lei brasileira antilavagem não se aplica a advogados, especialmente no que se refere à obrigação de comunicarem ao COAF – nosso órgão de inteligência financeira – quaisquer operações suspeitas na relação com seus clientes.


O argumento é o de que tal obrigação iria “vilipendiar o sagrado sigilo constitucionalmente garantido entre advogado e parte”[6]. Ora, o sigilo deve ser garantido, sem dúvida, quando se trata da atividade de um advogado no que tange à defesa de direitos de seus clientes, especialmente perante o Poder Judiciário, atividade que não pode ser exercida por nenhum outro profissional. Coisa bastante diversa é a assessoria jurídica e o aconselhamento jurídico, atividades que podem inclusive ser exercidas por pessoas sem formação em Direito.


Em 2019 a UNODC (agência da ONU) reuniu em Oslo, na Noruega, por três dias, um grupo de cerca de 140 especialistas – entre os quais o autor deste artigo – de mais de 50 países para discutir formas de combater a grande corrupção transnacional. Ao final do encontro, validamos um documento com 64 recomendações práticas, e uma delas refere-se especificamente à questão do sigilo profissional de advogados[7]:


“Os reguladores internacionais, legisladores e ordens de advogados devem remover as incertezas existentes em torno da interpretação do privilégio legal ou sigilo profissional, esclarecendo quais atividades são e quais atividades não são cobertas por essas proteções em sua jurisdição”.


Outros serviços profissionais altamente relevantes nesse debate são aqueles relacionados a registros públicos. Um fato recente a se destacar é a injustificável decisão de um tabelião de Brasília que, segundo reportagem[8] de Breno Pires e Rafael Moraes Moura publicada neste O Estado de S.Paulo, ocultou dados do senador Flavio Bolsonaro em escritura pública referente à mansão adquirida pelo filho do Presidente da República. Não se trata aqui de estabelecer qualquer culpa: cabe às autoridades investigar casos suspeitos e caberá, eventualmente, ao Poder Judiciário decidir se o senador cometeu crime quando comprou a tal mansão de R$ 6 milhões. Mas é preciso ressaltar que a decisão do tabelião vai na contramão da lei de registros públicos e das responsabilidades desses profissionais no sentido de fortalecer um ambiente transparente e íntegro no que diz respeito a transações financeiras.


A grande corrupção é um fenômeno altamente negativo para a coesão social, dado que aprofunda as desigualdades, desvia volumosos recursos que poderiam ser utilizados na promoção de direitos e solapa a confiança nas instituições. Prevenir, detectar e sancionar a grande corrupção não é tarefa apenas do Estado. É tarefa de todos nós.


[3] Ver

Documento

[4] Em inglês: “Financial flows that are illicit in origin, transfer or use, that reflect an exchange of value and that cross country borders.”

[5] Ver https://www.factipanel.org/reports

[6] Ver https://www.migalhas.com.br/quentes/343603/oab-decide-que-advocacia-nao-se-submete-a-lei-de-lavagem

[7] Ver “Recommendation 15” em https://www.unodc.org/documents/corruption/meetings/OsloEGM2019/Oslo_Outcome_Statement_on_Corruption_involving_Vast_Quantities_of_Assets_-_FINAL_VERSION.pdf

[8] Ver https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cartorio-oculta-dados-de-flavio-em-escritura-publica-da-casa-de-r-6-milhoes,70003638122


*Fabiano Angélico é mestre e doutorando em Administração Pública e Governo (FGV EAESP), tem especialização em Transparência, Accountability e Combate à Corrupção (Faculdade de Direito – Universidade do Chile) e graduação em Jornalismo (Fafich/UFMG)

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