A pandemia que vem assolando o mundo desde meados do ano passado evidenciou de modo violento as fragilidades e inconsistências da ação pública, especificamente estatal.
Disfunções que usualmente ocasionariam ‘meros’ atrasos na prestação de serviços tornaram-se questão de vida ou morte.
As consequências da inércia, inefetividade e ineficiência estatais foram elevadas à máxima potência: diante das quase dois milhões de mortes em todo o mundo, o planejamento, a eficiência, a responsividade e agilidade da ação pública mostram-se fundamentais.
E, para tanto, imprescindível um pleno e confiável diagnóstico dos aspectos epidemiológicos – o que por si só, no Brasil de hoje, marcado pelo apagão de dados e informações, é um imenso desafio.
Qualquer destinação de recurso público a medidas inócuas ou pouco efetivas redundará em mais um elevado número de mortes – e no incomensurável sofrimento de familiares que terão que suportar vida afora a dor de haver perdido um dos seus.
Ganha destaque, nesse contexto, a técnica das Políticas Baseadas em Evidências, que leva em consideração a realidade e demandas da população, partindo do ciclo das políticas públicas – montagem de agenda, formulação da política, tomada de decisão, implementação e avaliação.
Já bastante discutidas nos meios acadêmicos – mas ainda estranhas a grande parte dos gestores brasileiros e da população em geral -, pressupõem comprometimento e coerência entre o cenário fático, as medidas propostas e os resultados esperados/possíveis.
Exigem, ainda, e para além da efetiva consideração de fontes científicas especializadas e confiáveis, a integral observância da accountability e transparência, de modo a possibilitar ao público o acompanhamento do processo de utilização das evidências, afastando-se – ou ao menos se minimizando – a chance de erros.
Para tanto, imprescindível a disponibilização dos dados não tratados emetadados; a explicitação das premissas analíticas e teóricas adotadas e a indicação de pesquisas anteriores a fundamentar as decisões dos gestores.
O Brasil, infelizmente, vem derrapando nesse sentido: não é incomum que tenhamos resultados pífios ou muito distantes do esperado em termos de políticas públicas.
Tramita no Congresso Nacional o projeto de lei nº 494/18 (originariamente PLS 488/17), que incorpora essa lógica à elaboração de políticas mediante a exigência de expressa motivação e indicação das evidências, além do seu grau de focalização ou universalização em face dos recursos disponíveis.
Essa iniciativa, porém, ainda não é capaz de gerar efeitos reais e concretos; traduz simples pretensão – bastante valorosa -, que, porém depende da efetiva aprovação.
Os Estados Unidos já tem um diploma vinculante nesse sentido: a Public Law 115-435 americana, de janeiro de 2019 (Foudations for Evidenced-Based Policymaking Act of 2018), segundo a qual toda e qualquer política pública deve ser concebida e desenvolvida com base em dados e informações concretas, científicas e confiáveis.
No Brasil, com um governante que parece muitas vezes viver em um universo paralelo, em que o Coronavírus causa ‘uma simples gripezinha’, um histórico atlético seria suficiente à tranquila superação da doença, a lei da oferta e da procura deveria se dobrar aos caprichos do demandante, a situação fica nada menos que desesperadora.
A dificuldade na obtenção dos dados relacionados à pandemia somente foi atenuada em razão da mobilização da sociedade civil organizada.
A própria carteira de vacinação do Presidente da República é tratada como assunto sensível de Estado, de modo a justificar uma disparatada decretação de sigilo…
Já são mais de cinquenta os países que iniciaram a vacinação com estratégias bem concebidas e planejadas, levando aos seus cidadãos esperança, conforto e proteção contra a doença que já ceifou tantas vidas.
Por aqui, assistimos estupefatos a mais um episódio de declarações falaciosas e sem a menor sustentabilidade de um insensível Presidente da República que afirma, pública e categoricamente, que ‘nem metade da população brasileira vai tomar a vacina’, por suposta falta de confiança em seus efeitos e segurança.
Ora, uma afirmação dessas, para além de desprovida de qualquer lastro, tem consequências potencialmente desastrosas: considerado o seu prolator, orientará a aquisição e distribuição das vacinas – em sentido diametralmente contrário à aqui defendida Política Baseada em Evidências.
Não obstante o desprezo do atual governo pelos dados e fatos, a eficiência da ação pública foi alçada à condição de princípio fundamental da Administração pela nossa Constituição – o qual, conforme assentado pelo STF, tem eficácia plena.
Dessa maneira, e conforme o princípio da legalidade – outro pilar fundamental da nossa Carta -, a sua não observância compromete a juridicidade da ação pública, com todas as consequências daí decorrentes, inclusive sob o ponto de vista da responsabilidade de natureza civil, administrativa, político administrativa – e eventualmente criminal.
Não podemos mais ser o país do ‘achismo’, em que as decisões atinentes ao dia a dia e à sobrevivência de milhões de cidadãos são tomadas de solavanco, sem reflexão, sem planejamento, sem sustentabilidade fática e técnica, e, pior, sem o menor comprometimento.
A ciência não pode ser deixada de lado – sob pena de sermos lançados de volta à Idade Média, ao custo de muitas vidas mais.
Que a obsessão do líder do governo federal pelo politicamente moribundo chefe maior dos Estados Unidos possa, ao menos dessa vez, resultar em algo bom para o nosso país: a importação da obrigatoriedade das Políticas Baseadas em Evidências traria um enorme avanço, com inquestionáveis benefícios para todos os brasileiros.
*Laura Barros, ex-controladora-geral e procuradora do Município de São Paulo.
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