Na sequência dos quatro artigos anteriores que publiquei neste espaço, apresento agora novas ideias, mantendo a prática de, para facilitar ao leitor, retomar a ligação com o que havia dito anteriormente.
Em suma, a proposta desenvolvida sustentava que o sistema de controle sobre a Administração ganhou ênfase especial sob a vigência da Constituição de 1988, notadamente: (i) pela diretriz principiológica mais expressa, no tocante ao tratamento da ética no exercício da função pública; e (ii) pela criação de novos instrumentos de controle da administração pública, acompanhada da ampliação do alcance de instrumentos existentes, bem como pelo reforço das competências e da autonomia dos órgãos de controle.
No último artigo, fiz comentários sobre os órgãos de controle jurisdicional. Pretendo agora discutir perspectivas de aprimoramento institucional do controle exercido pelos Tribunais de Contas.
No sentido de reforço da autonomia dos Tribunais de Contas, a Constituição reduziu drasticamente o poder de influência do Presidente da República sobre a escolha dos seus membros – tome-se aqui o caso do Tribunal de Contas da União como exemplo. Enquanto na carta anterior, todos os Ministros eram nomeados pelo chefe do Executivo, na atual apenas um terço o são (os demais são apontados pelo Legislativo); ademais, mesmo entre os três ministros de indicação presidencial, apenas um é de livre-nomeação, sendo que os demais devem ser escolhidos a partir de lista-tríplice, alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal (art. 73) – órgão que, aliás, pela primeira vez recebeu menção no texto constitucional.
O novo desenho dos Tribunais de Contas resultou na sua crescente autonomia, aumentando, assim, a efetividade do seu controle. Mas a história do Brasil registra fase em que – antes da criação dos Tribunais de Contas propriamente ditos, sendo então função análoga à sua exercida por outros órgãos – os órgãos de controle não-judiciais posicionavam-se em pé de igualdade em relação aos Tribunais Judiciários no tocante ao exercício de jurisdição.
Durante o período do Império, com efeito, o Brasil adotou um modelo de separação de poderes inspirado no sistema francês, com a previsão da dualidade de jurisdições.
Nesse sistema de dualidade de jurisdições, ao lado da jurisdição exercida sobre as questões de direito surgidas – dizendo-o de modo simplificado – nas relações jurídicas entre particulares (jurisdição judicial), há uma outra estrutura jurisdicional competente para tratar das questões pertinentes às relações jurídicas de que a administração pública é parte (jurisdição administrativa).
Trata-se de duas estruturas organicamente diversas.
A jurisdição judicial corresponde àquilo que tradicionalmente no Brasil se diz Poder Judiciário, ou seja, uma estrutura formada por tribunais independentes do Poder Executivo e do Poder Legislativo, que – sigo com foco no caso brasileiro – se legitima por uma escolha técnico-científica de aferição de conhecimentos jurídicos e que atua basicamente com foco no controle de legalidade: legalidade em sentido amplo, incluindo, por certo, a noção de constitucionalidade.
Já a jurisdição administrativa, que igualmente caracteriza “função jurisdicional” (a função de dar a última palavra sobre conflitos na aplicação do direito), estrutura-se de modo separado dos tribunais judiciais, inserindo-se organicamente na administração pública, mas com garantias de plena autonomia quanto às autoridades cujos atos controlará.
O Brasil, com a Proclamação da República, abandonou o modelo francês de dualidade de jurisdições, optando pelo sistema norte-americano de jurisdição unificada nas mãos do Poder Judiciário – além, como é notório, de outros elementos como a federação e o presidencialismo.
Desde então, segue o Brasil a regra – usando aqui a expressão da Constituição de 1988, artigo 5º, XXXV – de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, o que implica dizer que a palavra final sobre a legalidade, sobre os conflitos na aplicação do direito (ou seja, a jurisdição), compete ao Poder Judiciário.
Nesse modelo, os Tribunais de Contas estruturados pelo regime republicano no Brasil não possuem jurisdição no sentido próprio do termo, estando suas decisões passíveis de um controle jurisdicional de legalidade.
O tema continuará em próximo artigo.
*Fernando Menezes de Almeida, professor titular da Faculdade de Direito da USP
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
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