É preciso construir regulação que considere os desafios multifacetados que envolvem os jogos de azar e o controle estatal
Roberto Livianu 1.out.2024 (terça-feira) - 5h54
Há décadas, os cassinos foram proibidos no Brasil, excetuando-se as loterias oficiais organizadas pelo Estado, como Mega Sena, Loteria Federal e Loteca, a antiga Loteria Esportiva. São administradas pela Caixa Econômica Federal, recolhem-se tributos e estamos aqui falando de jogos controlados pelo Estado.
Já as máquinas de caça-níquel de bar, as roletas e os pontos de jogo do bicho, tudo isto funciona na mais total e absoluta clandestinidade.
Há um debate em curso no país a respeito da legalização dos jogos de azar. Há quem defenda a permissão da reabertura de cassinos com o argumento que isto poderia ser muito positivo sob o prisma econômico, pois criaria empregos e movimentaria a economia. Entretanto, é preciso ter cuidado com esta tese. O tráfico de pessoas e de drogas também empregam pessoas e nem por isso são positivos. Além disso, há muitos cassinos que fazem lavagem de dinheiro.
Fala-se que a legalização dos cassinos impulsionaria o turismo no Brasil. Eu pergunto: o Rio ficaria mais belo e atrativo com cassinos? Floripa? O Nordeste? Estes lugares são maravilhosos e têm belezas atrativas por si só, e não precisam de cassinos para atrair turistas.
Na verdade, o que é necessário que se ofereça é segurança pública, para que os turistas se sintam seguros. É por isso que eles não vêm ao Brasil. Basta conferir as pesquisas feitas a respeito disto no setor.
São sofismas num campo marcado pela opacidade e dificuldade de fiscalização, extremamente propício à lavagem de dinheiro, no mundo inteiro. Há aproximadamente 10 anos, fui convidado a dar uma palestra na agradável capital do Peru, em Lima, país de Vargas Llosa.
Numa noite, ao sair para jantar e apreciar a famosa culinária peruana, reconhecida internacionalmente, deparei-me com o fato de que em Lima, havia nada mais, nada menos, que mais de 100 cassinos em funcionamento, sem que houvesse pujança econômica naquela cidade a justificar tamanho número de estabelecimentos dedicados à jogatina. Tal situação evidenciava com clareza solar que estávamos diante de uma rede institucionalizada para a lavagem de ativos, porque obviamente a demanda por cassinos se resolveria com 2 ou 3, no máximo.
Voltando ao Brasil, durante o governo Temer, foi editada uma primeira norma (Lei 13.756 de 2018) tratando das chamadas bets ou apostas on-line, determinando que em 4 anos haveria a respectiva regulamentação que não ocorreu e a verdade é que esse mercado cresceu de maneira absolutamente descontrolada.
Praticamente todos os times de futebol ostentam patrocínios de casas de apostas e um grande debate se reacendeu diante da prisão por mais de duas semanas de Deolane Bezerra e do decreto de prisão do cantor Gusttavo Lima, por envolvimentos criminosos com uma destas empresas de bets, que está bancando integralmente o maior salário de um jogador em atividade do futebol brasileiro, de atleta que atua na Seleção holandesa. Deolane e Gusttavo são suspeitos de lavagem de dinheiro e outros delitos.
O governo federal, diante da percepção da necessidade de regulação das bets, finalmente debruçou-se sobre o tema e o priorizou, tendo sido aprovada a Lei 14.790 de 2023, que deve vigorar a partir de janeiro de 2025. Mas cometeu um erro capital, começando a se dar conta do uso intenso e descontrolado do cartão do Bolsa Família para apostas, que está transformando as casas de pessoas pobres em cassinos, subvertendo-se o espírito do benefício social.
As pessoas estão ficando viciadas nesses jogos, endividando-se, o que a cada dia evidencia o caráter multifacetado desta verdadeira bomba-relógio, que envolve saúde pública, temas familiares, éticos e muitas outras questões, e não só a perspectiva arrecadatória que foi o único foco observado pelo governo por falta de visão estratégica.
Há muitos interesses em jogo aqui, literalmente aliás. Não é sem motivo que cada vez mais têm sido utilizadas as melhores estratégias publicitárias por este guloso segmento com figuras icônicas idolatradas pela sociedade, como o grande e histórico craque Rivellino, herói da conquista da Copa do Mundo de 1970, assim como as atletas Duda e Ana Patrícia, do vôlei de praia, e Bia Souza, do judô, ouro olímpico em Paris 2024. O Brasil admira e respeita muito estas pessoas e presta atenção no que dizem.
Palavras são cunhadas com habilidade como “profetize” para estimular as apostas, colocando o cliente no trono do profeta. Inclusive, chegou-se a contratar como garoto propaganda o jogador de futebol Hernanes, que fez carreira no São Paulo Futebol Clube, tendo o apelido de “profeta”. Ele estimulava as apostas na posição de “profeta” chamando as pessoas a “profetizar” junto com ele. Tudo é habilidosamente envolvente, sedutor e certeiro.
Ocorre que estamos falando de um mercado cujos tubarões movimentam sem controle, sem limites éticos, na base do capitalismo selvagem, do salve-se quem puder, R$ 20 bilhões por mês. Chegaram a cogitar a hipótese de permitir apostas sobre os candidatos nas eleições municipais, em óbvia afronta ao ordenamento jurídico eleitoral, que o TSEvedou corretamente.
Observemos que as propagandas mencionam “jogue com responsabilidade”, mas todos nós sabemos que isto tem efeito zero para o viciado. Há casos de pessoas que estão arruinando suas famílias, vendendo carro, contraindo dívidas com agiotas, não as pagando e sendo ameaçadas de morte.
“Beba com responsabilidade” ou “jogue com responsabilidade” é um faz-de-conta. Óbvio que é melhor se fazer a advertência do que não fazer, mas não tenhamos ilusões de que elas resolverão algo.
É necessário que o tema seja tratado com a necessária seriedade e responsabilidade multifacetada que o caracteriza, devendo-se paralisar de imediato a absurda ideia da legalização dos cassinos no Brasil. É preciso construir política pública relacionada a isto de imediato.
Faz-se imprescindível amadurecer esses assuntos sob todos os ângulos necessários em audiências públicas, ouvindo a sociedade e as instituições, para que a prevalência do interesse público norteie esta regulação. Inclusive, se necessário, que seja brecada a vigência da Lei 14.709 de 2023. SOS Brasil!
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