FREDERICO CELSO SANTANA BASTOS 16 MAIO 2024 | 5min de leitura
Ao longo do tempo, a convivência coletiva só se mostrou viável quando os integrantes de uma sociedade adotaram para si, ainda que rudimentarmente, regras de comportamento, com determinações, permissões, margem de tolerância e perspectiva punição para quem não as cumprisse. O objetivo desse sistema é o equilíbrio, ainda que frágil, entre esses indivíduos. A violação dessas regras para benefício próprio é o que chamamos de corrupção. No Brasil, passados dez anos de Operação Lava Jato, é hora de refletir sobre esses princípios que parecem ter se perdido.
No Brasil, estabeleceu-se a percepção de que culturalmente somos uma nação corrupta. Entre nós mesmos circula o batidíssimo clichê do “jeitinho brasileiro”. Essa autodepreciação sempre infectou o imaginário do cidadão, fazendo com que ele acreditasse que todos os males do seu cotidiano eram resultado direto dessa maldita praga. O seu salário é baixo? É porque políticos estão te roubando. Serviços públicos são ruins? A corrupção corrói a máquina pública! Seu time perdeu um campeonato? Claro! Esse juiz está comprado.
Com a redemocratização, esse discurso ganhou corpo de tal modo que virou obsessão e tomou de assalto (desculpe o infame trocadilho) o debate político. A volta da capacidade de eleger todos os seus representantes, e em meio a uma gravíssima crise financeira, o brasileiro viu renascer fortalecido o eterno e quixotesco sentimento de necessidade “combate à corrupção”. Não por acaso a maioria do eleitorado brasileiro depositou em um obscuro candidato a presidente a sua esperança de dias melhores pela promessa de “caçar marajás” (corruptos que enriqueciam às custas do contribuinte).
Com a popularização da internet e o surgimento das redes sociais, esse sentimento ganhou ainda mais ressonância. Nesse contexto, a operação Lava Jato, iniciada em março de 2014, surgiu como o catalisador de um sentimento coletivo de indignação represado ao longo de décadas. De certa forma, ele também serviu como forma de expurgar um antigo ressentimento. Para uma sociedade que se acostumou a ver escândalos de corrupção serem rapidamente esquecidos, algo que a até a teledramaturgia incorporou, ver empresários poderosos presos foi um sentimento novo e, para alguns, de revanche.
No entanto, com o passar do tempo, diversas situações ocorridas nos desdobramentos da Operação causaram controvérsia e questionamentos. Mais tarde, veículos de imprensa independente como o The Intercept Brasil e a revista Piauí descobriram uma série de irregularidades gravíssimas ocorridas nos bastidores da Lava Jato, incluindo combinação de estratégias entre juiz e promotoria, bem como vazamento seletivo de informações sigilosas para a mídia. Com o tempo, ficou claro o objetivo de influenciar a opinião pública e o processo político.
Críticos argumentaram que tais vazamentos violavam os direitos dos acusados e comprometiam o devido processo legal. O ponto mais grave sem dúvida foi o caso do o então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que cometeu suicídio em consequência de uma acusação, que mais tarde se mostrou infundada, de irregularidades na Operação Ouvidos Moucos, um desdobramento da Lava Jato em Santa Catarina. Preso injustamente e constrangido publicamente, Cancellier tirou a própria vida 18 dias depois da prisão.
O ponto de não retorno da Operação foi, sem dúvida, quando seus protagonistas usaram a notoriedade adquirida dentro das investigações para construir carreiras políticas. Carreiras que se tornaram mandatos nos quais se aliaram a adversários dos seus investigados. Quando o juiz condenador Sérgio Moro se torna ministro do adversário político do candidato impedido de disputar as eleições de 2018 – e pior: um extremista de direita - é hora de ter um estalo que diz “Opa! Algo está errado!”. Se isso não aconteceu com você, é hora de rever seus conceitos sobre combate à corrupção.
Ora, se a corrupção consiste basicamente em respeitar as regras do jogo, a partir do momento em que eu violo os princípios do estado democrático de direito, começando pela isenção e tratamento isonômico, estou praticando – adivinha só! – corrupção. Perverter as regras do jogo não se torna permitido porque você alega querer combater trapaceiros. Mas mesmo esse mecanismo de controle precisa ter seus freios e contrapesos.
Enquanto a operação expôs corrupção endêmica, também foi criticada por contribuir para a perda de empregos e o enfraquecimento da economia brasileira devido à paralisação de grandes projetos e à desconfiança nas empresas envolvidas. Segundo estudos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a Lava Jato resultou na destruição de 4,44 milhões de empregos entre 2014 e 2017 e reduziu o Produto Interno Bruto (PIB) em 3,6% no mesmo período. De 2015 a 2018, as maiores construtoras brasileiras perderam 85% da receita.
Combater a fraude, a trapaça e o desrespeito ao direito e zelar pela probidade administrativa é fundamental para a manutenção de qualquer coletividade. Mas não pode ser um fim em si mesmo, e definitivamente não pode ser ao custo de causar malefícios para essa própria coletividade.
A Operação Lava Jato completa dez anos no momento de maior polarização política do país em décadas, justamente quando escapamos por um triz de mais um golpe de Estado. Como alguns dos principais alvos dela voltam ao centro do cenário político do país, pode ser tentador para muitos setores da sociedade, inclusive a imprensa, cometerem novamente velhos erros. Isso não pode acontecer!
Para o bem e para o mal, a Lava Jato faz parte da nossa história. É o momento de escolher entre repetir seus erros que tanto nos custaram ou aprender com ela para trilhar um caminho melhor. Que façamos diferente dessa vez.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
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