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Compliance, ética, justiça, hipocrisia?

GONZALO VECINA NETO* 26 SETEMBRO 2023 | 5min de leitura


No dia 16/8/23 foi publicada na imprensa uma matéria paga assinada por nove organizações do setor de medicina suplementar que representam: a medicina de grupo, as cooperativas médicas, os hospitais privados, as seguradoras, enfim todo esse setor.


As organizações denunciam uma farmacêutica multinacional por indicar caminhos para judicializar medicamentos não aprovados pela Anvisa, pela Conitec ou pela ANS. A indicação de caminhos alternos incluiria um protocolo enviado aos médicos com instruções nos relatórios para que os pacientes conseguissem no judiciário sentenças favoráveis ao uso de medicamentos sem aprovação pelos órgãos regulatórios ou medicamentos sem comprovação científica de que funcionem para aquela doença, o chamado uso “off label”.


Esse episódio me lembra outro ocorrido por volta de 2001/2 quando do lançamento de uma droga muito promissora para o tratamento de leucemia. A ANVISA registrou o medicamento e seu preço e o Ministério da Saúde definiu e negociou com a multinacional que o lançou, um custo para sua incorporação no SUS. As regras de incorporação, eram rígidas e se enquadravam dentro do escopo da ciência produzida durante o desenvolvimento da droga. Mas (sempre tem um mas...) dadas as excepcionais qualidades do produto, muitos médicos queriam ampliar seu uso e ver se beneficiavam mais vidas – boas intenções que não tinham apoio em dados gerados pela pesquisa que baseou sua aprovação pela Anvisa. A empresa, frente a essa demanda médica que a interessava comercialmente, criou um documento para que os médicos conseguissem burlar o protocolo lançado pelo Ministério da Saúde! Isso mesmo – como burlar a indicação e ampliar o uso e consumo de seu produto.


Identificada a patifaria, a Anvisa foi muito dura com a empresa e seu principal executivo foi afastado e a partir daí se buscou reestabelecer a normalidade. No caso agora, as condições são muito semelhantes, mas deve merecer uma análise mais detalhada do que fazer.


Primeiro tem-se que analisar o papel da empresa com suas normas de compliance, código de ética... quanto disso não é somente hipocrisia para tornar esse ser irracional chamado mercado, mais dócil? A empresa timidamente já veio a público dizendo que não é bem assim, que providencias estão sendo tomadas e responsabilidades serão apuradas. Mas a sociedade quer mais. Isso que ocorreu é extremamente grave e a correção tem que ser exemplar. Tais desvios são inaceitáveis. As empresas tem que ser responsabilizadas e suas intenções devem ser transformadas em atos reais. Lembrem-se da mulher de Cesar.


Mas existe um segundo aspecto a ser verificado e que se torna oportuno discutir neste momento. Trata-se do fenômeno da judicialização. Sempre se considera que os juízes ao decidirem estão reestabelecendo a justiça. Baseado no artigo 196 da Constituição Cidadã de 1988 – “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Mas a leitura não termina aí, pois esse direito não é construído do ar, assim continua o artigo 196: “é garantido mediante politicas sociais e econômicas que visem a redução do risco da doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. Portanto o direito citado não é fruto de qualquer automatismo e sim da execução de políticas publicas. O Judiciário - ao dar uma decisão em uma solicitação que não atende aos ditames da avaliação da tecnologia ou ao recomendar a prescrição daquela droga ainda não aprovada para seu uso pela ANVISA - é quem estabelece a permissão de uso. Com isso, está cometendo com a melhor das boas intenções erros que prejudicam o funcionamento do SUS e das instituições legalmente inseridas no Estado pela sociedade.


Um juiz que aprova um medicamento que a estrutura legal não aprovou, está cometendo um desvio e tentando fazer uma politica publica que não é tarefa do Judiciário. Mas a vida não tem preço, o que é verdade, mas tentar realizar atos que não tem alicerce no conhecimento pode parecer querer ser divino. Está mais que na hora de se tomar medidas para que a estrutura legal aprovada pelo Legislativo seja respeitada ou... corrigida. Os tribunais superiores, já se posicionaram algumas vezes em relação a alguns desses casos - uso off label ou prescrição de medicamentos não registrados no país - mas esse posicionamento foi insuficiente. No momento existe uma nova decisão sendo analisada no STF que talvez venha a trazer uma melhor orientação em relação a essas questões, urge que essa decisão venha à luz.


Reconheço que essa casa de marimbondos é extremamente perigosa, mas temos que aborda-la e construir melhores caminhos. Pelo bem da saúde e da democracia.


Existe um consenso muito grande acerca da importância de que as prescrições médicas tenham que ser baseadas em boas evidências cientificas. Embora a lei permita que um médico realize essas prescrições e se responsabilize por elas, juntamente com seu paciente que o escolheu. Mas até que ponto toda a sociedade tem que pagar essa conta?


O país do SUS tem que construir um arcabouço legal que seja respeitado pelas empresas e também pelo Judiciário! E este parece ser um bom momento para que tão importantes questões sejam retomadas.


*Gonzalo Vecina Neto, professor assistente da FSP/USP e do mestrado profissional da EAESP/FGV


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica


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