A corrupção consiste na apropriação daquilo que é público por particulares. Simples assim. Aquilo que pertence e deve servir a toda a população, com transparência, passa a atender interesses privados, de indivíduos ou grupos específicos. Atualmente muitas pessoas parecem visualizar certa dualidade entre candidatos “democratas, mas corruptos” de um lado e, “autocratas, mas honestos”, de outro. Neste espaço não trataremos hoje de democracia e autocracia, mas parece importante decantar algumas nuances para que a visão de honestidade possa ser confirmada. Se o motivo determinante do voto para alguns é realmente o combate à corrupção, é essencial conhecer melhor como ela se dá. Isso porque para o corrupto é primordial que o povo não saiba que ele dá de ombros para a esfera pública. Para o corrupto, a coisa mais importante é “parecer honesto”. E para tanto diversas estratégias diversionistas são adotadas.
A primeira é minimizar algumas condutas quando elas já foram descobertas. Chama bastante à atenção a conduta de atenuar a prática de rachadinhas, assessores-fantasmas e constante compra de imóveis em dinheiro vivo (em malas…) por agentes públicos. Tudo isso nada mais é do que é apropriação privada daquilo que é público, ou seja, corrupção. Transforma-se um gabinete público em um negócio privado. O leitor empresário certamente não pagaria salário para um funcionário que nunca apareceu para trabalhar na empresa. Seguramente, quando o leitor vai comprar um imóvel vai ao banco e faz uma transferência bancária, após conseguir a liberação com uns dois ou três empregados do banco. Por certo o leitor não obriga seu empregado a lhe dar parte do salário. E o leitor admitiria que isso ocorresse com o dinheiro público? Pois bem, é disso que se trata.
É bastante curiosa a lógica das pessoas que “compreendem” estas condutas, afirmam que “isso sempre existiu”, mas estão certas de que quando se trata de questões maiores, empresas públicas, ministérios, secretarias, multinacionais, contratos públicos, aí o corrupto de estimação seria tomado por uma onda de honestidade ufanista e, ciente de seus deveres cívicos, bradaria “Opa, aí não né, aí é pátria amada, aí é Brasil. Amém”.
Outra estratégia comum visa as diversas maneiras de ocultar atos de corrupção. Basicamente segue-se a lógica do “não há corrupção se não houver informação e investigação”. Logo, a receita é interditar a comunicação e corroer as instituições. Mas como fazer isso? Por exemplo, decreta-se o sigilo de questões que tratam rigorosamente de interesse público, como gastos de cartão de crédito de membros do governo. O sigilo, que deve ser a exceção em uma república, passa a ser a regra, e a transparência desaparece, impedindo que o povo avalie se o seu dinheiro está sendo empregado de forma adequada.
Além disso, pode-se simplesmente deixar de compilar dados relevantes. Cria-se um apagão de dados. Não fosse a criação de um consórcio pelos órgãos de imprensa sobre o número de mortes decorrente de COVID-19, não haveria estatística para a compreensão e o combate da pandemia.
Contudo, se não teve jeito, e a informação veio a público, aí é possível ainda questionar os dados e coagir os órgãos públicos que produzem estatísticas, punindo seus membros, especialmente onde existe espaço para nomeações de cargos em comissão.
Em seguida, imperioso que se ataque a imprensa profissional, para que a população, mesmo quando estiver diante de denúncias graves, prefira acreditar no vídeo que o seu José, vizinho do 4º andar, enviou no Whatsapp, em que um blogueiro disse que é tudo mentira. A perseverar a aceitação destas pseudo fontes de informações, caminhamos para que em breve sejam questionados conceitos básicos de matemática “espera aí, você que está dizendo que 1+ 1=2, isso é a sua opinião, respeite quem pensa diferente…”.
Por fim, o desmonte das políticas públicas e das instituições garante que o assalto à coisa pública se torne perene. Se um determinado órgão é criado para a proteção de um grupo específico, pode ser capturado para servir a interesses privados, nomeando-se pessoas exatamente para tutelar a desmantelamento das funções para as quais a pasta/órgão foi criada. E assim passa a boiada, enquanto órgãos vão sendo esvaziados, servidores punidos simplesmente por cumprir a função para a qual foram selecionados, como proteção do meio ambiente, do índio, da saúde, da educação, etc. Alguns pagam com a própria vida. Igual observação vale para as forças policiais e para o Ministério Público.
Sem alarde, é importante também promover a criação de leis que tornem mais flexível o conceito de corrupção e permitam ao corrupto escapar da persecução penal. Neste sentido, a Lei Federal nº 14.230/2021 que alterou a Lei de Improbidade Administrativa representa um dos maiores retrocessos no combate à corrupção nos últimos anos.
O toque final do diversionismo é o ataque ao Poder Judiciário, apresentado como partidário e “inimigo” do desenvolvimento. Assim como o mágico que faz com que a plateia toda olhe para uma mão enquanto a outra pratica o truque, os corruptos tentam focar o debate em questões irrelevantes ou absolutamente desprovidas de qualquer fundamento lógico-científico, para que a outra mão possa praticar o truque.
E assim os corruptos, diante de seus fieis seguidores, desfilam com vestal da probidade, arvorando-se como detentores de inata honestidade.
*Glauco Costa Leite é juiz de Direto do Tribunal de Justiça de São Paulo, Doutor pela USP e pela Universidade de Salamanca, autor do livro Corrupção Política: Mecanismos de Combate e Fatores Estruturantes no Sistema Jurídico Brasileiro
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Comentarios