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Desinformação e a corrupção da democracia

Murilo Gaspardo*

31 de agosto de 2022 | 05h00


A democracia liberal costuma ser definida a partir da combinação entre eleições livres e competitivas e as garantias do Estado de Direito. O pleno exercício do direito do voto, por sua vez, tem como pressuposto a formação da opinião pelos cidadãos de maneira bem informada e livre de pressões. Assim, a garantia do respeito à vontade majoritária do povo brasileiro expressa por meio do voto nas urnas eletrônicas constitui uma condição necessária, mas não suficiente, para solidez do regime democrático, pois a disseminação de desinformação compromete a livre formação da opinião e corrompe a democracia.


Vivemos em um contexto global que tem como uma de suas notas distintivas o que Castells (2017) denomina de “mundo midiático multimodal”, ou seja, a combinação de comunicação de massa (grande mídia) e “autocomunicação de massa” (internet, redes digitais), o qual exerce uma influência crescente sobre os processos políticos. Se, por um lado, isso amplia as fontes de acesso à informação e as possibilidades de expressão de opinião, por outro, temos: (a) o domínio da imagem, de mensagens extremamente simplistas e dos apelos emocionais; (b) a prevalência das narrativas sobre os fatos, desafiando dados, estatísticas, a autoridade dos especialistas e da ciência; (c) a “política do escândalo”, a qual inspira um sentimento de desconfiança e reprovação moral sobre o conjunto dos políticos e da política; (d) a “política do medo”, ou seja, “a utilização deliberada do óbvio desejo que as pessoas têm de proteção para estabelecer um estado de emergência permanente que corrói e, por fim, nega na prática as liberdades civis e as instituições democráticas” (CASTELLS, 2017).


Consequentemente, os debates políticos se tornam cada vez mais rasos, polarizados e irracionais, eleições são manipuladas e o papel dos representantes e das instituições representativas na mediação dos conflitos sociais é drasticamente reduzido. Isso tudo fornece elementos para os “engenheiros do caos” transformarem a natureza do próprio “jogo democrático”, e facilita a ascensão dos populistas, inclusive porque tanto eles como as redes virtuais atuam conforme a mesma lógica de negação da intermediação, seja das instituições políticas ou da imprensa. Entretanto, se a captação de apoio dos descontentes pelos populistas, em grande medida, só é possível em função dessas novas formas de comunicação, as origens da revolta têm substratos materiais: o medo da piora das condições materiais de vida e da perda de identidade cultural. Além disso, as redes potencializam a desconfiança sobre representantes e instituições, mas há problemas reais na sua origem: a corrupção e distanciamento das lideranças (EMPOLI, 2019).


Especialmente a partir das eleições de 2018, a influência das redes sociais e da desinformação sobre os processos políticos, bem como a “política do medo” (por exemplo, no que se refere à violência urbana) passaram a ser objeto de intensos debates no Brasil. No âmbito legislativo, o “Marco Civil da Internet” (Lei nº 12.965/2014) e a “Lei Geral de Proteção de Dados” (Lei 13.709/2018) são os recursos disponíveis até o momento no Ordenamento Jurídico Brasileiro para tentar fazer frente a esse novo contexto. No Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, temos o controverso “Inquérito das fake news” (Inquérito 4781), sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, sobre redes articuladas que promovem a disseminação de desinformação e a instabilidade da democracia. Ao tomar posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o mesmo Ministro Alexandre de Moraes também ressaltou que “a intervenção da Justiça Eleitoral será mínima, porém célere, firme e implacável no sentido de coibir práticas abusivas ou divulgações de notícias falsas ou fraudulentas”.


Entretanto, o fato é que ainda não dispomos de um aparato jurídico-institucional eficiente para inibir e reprimir a disseminação de desinformação. Isso se explica, dentre outras razões, pelo seguinte: (1) embora o exercício da liberdade de expressão não autorize a propagação de mentiras e do discurso do ódio, na prática, não é simples o controle prévio das informações e opiniões publicizadas em razão do risco de se incorrer na prática da censura; (2) quando alguma medida é adotada, em geral, a desinformação já produziu os efeitos pretendidos, isso porque a temporalidade das respostas institucionais não consegue acompanhar a velocidade de circulação de mensagens pelas diferentes mídias. Assim, a corrupção da democracia pela desinformação é uma dos maiores desafios para a integridade dos processos políticos em nosso tempo, e não temos uma resposta satisfatória para o problema, cuja solução vai requerer um grande esforço coletivo de juristas, da comunidade acadêmica, dos líderes políticos e da sociedade como um todo.


*Murilo Gaspardo, 39 anos, é vice-diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Câmpus de Franca – SP. Livre-docente em Teoria do Estado pela UNESP, é doutor, mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac).



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