Por Eduardo Muylaert*
29/03/2023 | 05h00
Os diamantes são os melhores amigos de uma garota? Claro, isso foi dito por Marilyn Monroe no filme Os homens preferem as loiras, de 1950, que hoje seria considerado machista. Diamantes também são muito apreciados por alguns chefes de Estado, embora possam se tornar seus piores inimigos. Essas pedras são consideradas tão atraentes porque concentram grande valor e são um investimento durável, que não sofre com a inflação. E, principalmente, são fáceis de transportar.
A ligação das pedras preciosas com o crime não é nova. O serviço secreto britânico investigava na Coréia um comércio ilegal de armas trocadas por diamantes contrabandeados: isso 007 - Um novo dia para morrer, de 2003. Já em Os diamantes são eternos, de 1971, James Bond procura desmantelar uma rede de traficantes que chegavam a transportar diamantes até no corpo de um colega morto. Nesse filme, todos que têm contato com diamantes roubados são assassinados. Na vida real, diamantes também têm destruído carreiras. Diamantes não quebram, o nome vem do grego ?????? (adámas), que se traduz por inquebrável. Já reputações podem ser facilmente destruídas se envolvidas com diamantes ao arrepio da lei e da ética.
Valéry Giscard d'Estaing foi eleito presidente da França em 1974, sucedeu a Georges Pompidou. Jovem, modernizador, seu governo ia bem, ele tinha maioria no Parlamento e era candidato certo à reeleição em 1981. Acontece que o jornal satírico Le Canard enchaîné publicou, em outubro de 1979, a matéria que desencadearia o chamado Caso Bokassa. O ditador Jean Bedel Bokassa, autodenominado imperador da República Centro-Africana, teria dado a Giscard, em 1975, ao tempo em que era ministro das Finanças, uma placa de diamantes de 30 karats, então estimada em 1 milhão de francos.
Ao se recusar a comentar o episódio, o Presidente cometeu o primeiro erro. Apesar dos conselhos de assessores, encarou a publicação com desprezo, dizendo que não estava à altura de sua imagem. Dois meses mais tarde, ao final de uma entrevista, acabou por afirmar timidamente que o presente não teria passado de simples bijuterias sem valor. Segundo erro. Desprezado pela opinião pública, Giscard perdeu as eleições de 1981 para François Miterrand.
Um jornalista comentou que o caso só existiu pela suspeita de que Giscard teria guardado os diamantes para ele, se enriquecendo pessoalmente, pois não havia qualquer registro oficial das pedras.
Presidentes às vezes se deixam embriagar pelas cortesias que recebem, esquecendo que o fazem em nome de um País. Ao tempo do absolutismo, havia confusão entre o patrimônio do príncipe e aquele do Estado. Hoje, porém, todos sabem que há nítida separação, ou ao menos deveria haver.
O Código de Conduta da Administração Federal brasileira afirma o óbvio, ou seja, que a autoridade deve respeitar os padrões de ética, "sobretudo no que diz respeito à integridade, à moralidade, à clareza de posições e ao decoro, com vistas a motivar o respeito e a confiança do público em geral".
É proibido, assim, receber quaisquer favores de particulares de forma a permitir situação que possa gerar dúvida sobre a probidade ou honorabilidade, ou aceitar presentes, "salvo de autoridades estrangeiras nos casos protocolares em que houver reciprocidade".
Interpretando a regra, que visa evitar qualquer forma de corrupção, ainda que disfarçada, o TCU decidiu que todos os presentes recebidos pelo Presidente da República devem ser incorporados ao patrimônio da União, com exceção dos itens de consumo próprios como bonés, camisetas, gravata, chinelo e perfumes...
Na decisão de 2016 o Relator chegou a exemplificar: "Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade."
Uma orientação oficial pode ser encontrada no próprio site do governo brasileiro, desde 2020: "Torna-se comum que empresas ou representantes ofereçam brindes, presentes, cestas de Natal/Ano Novo, convites para eventos, hospitalidades ou qualquer coisa de valor aos servidores, com a aproximação das festas de fim de ano. Lamentavelmente, tais oferecimentos, aparentando sinais de amabilidade, cortesia e lhaneza, muitas vezes trazem intenções veladas que poderão desencadear pedidos de favorecimentos, atos fraudulentos ou de corrupção" (Ofício-Circular 5413/2020)
Além de presentes, é proibido ao agente público receber "qualquer tipo de ajuda financeira, gratificação, prêmio, comissão, doação, patrocínio, viagens, despesas promocionais, hospitalidades, presentes, entretenimento, facilitações, propina, refeições ou qualquer coisa de valor ou vantagem indevida para si ou para familiares".
A própria orientação oficial esclarece que, caso a devolução do presente não seja imediata, por exemplo quando o servidor não o tenha recebido pessoalmente, ou a recusa imediata poss gerar algum constrangimento, pode haver doação em favor de entidade assistencial, que deve ser comunicada à empresa para evitar assim que tal circunstância se repita.
Quem fugir a essa regra elementar não só vai ter a reputação manchada, vai ter também de enfrentar processos, até criminais. Isso se aplica, na linguagem do grande Nelson Hungria, "a todos os órgãos e agentes públicos, do presidente da República ao estafeta de Vila dos Confins".
*Eduardo Muylaert é advogado
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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