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Estamos todos sendo vigiados?

Laura Mendes Amando de Barros*

07 de setembro de 2022 | 05h00


Em um cenário de inegáveis retrocessos democráticos, em que as liberdades cidadãs se veem oprimidas pela sanha competidora de extremos em uma sociedade dividida e contraposta, as discussões atinentes às garantias individuais demandam debate e especial cuidado.


Consideradas as inclinações autoritárias não raramente expressas pelo governo federal de ocasião, com a restrição da atuação dos conselhos participativos, a edição de atos e estratégias absolutamente contrárias à transparência e ao controle social, salta aos olhos a sua tentativa de, de alguma forma, categorizar os indivíduos, em uma kafkaniana inversão de papéis: a sociedade, titular da soberania estatal, e essencialmente incumbida da missão constitucional de controlar seus representantes, vê-se vigiada de forma descabida, perigosa e incompatível com a Constituição Federal.


Vale lembrar o lamentável episódio ocorrido em 2021 em que o governo elaborou uma ‘planilha’ em que enquadrava cidadãos brasileiros – em especial jornalistas – em três categorias: contra si, a favor de si, e neutros.


A bizarra iniciativa, construída a partir de informações disponíveis na internet (no caso, no Facebook) e voluntariamente disponibilizadas por seus titulares é inquestionavelmente ilegal e abusiva, inclusive em razão do disposto no artigo 7º, §3º da LGPD (para além dos princípios constitucionais basilares da isonomia, privacidade, intimidade e liberdade).


Diante do discreto impacto – frustrante e preocupante – alcançado pela estratégia claramente autoritária e repressiva, parece que o governo se viu estimulado a seguir em sua cruzada de alijamento do cidadão das arenas públicas e desrespeito à Lei de Acesso à Informação (inclusive mediante falaciosa invocação da Lei Geral de Proteção de Dados como suposto fator impeditivo).


Consubstanciando as mesmas pretensões de controle e opressão, o chefe do Executivo federal editou, em outubro de 2019, o Decreto n. 10.046, sobre o compartilhamento de dados no âmbito da Administração federal – e por meio do qual instituiu o denominado Cadastro Base do Cidadão.


Trata-se de norma potencialmente comprometedora de liberdades individuais fundamentais como intimidade, privacidade, autodeterminação informativa e proteção de dados, tendo em vista a ausência de mecanismos de segurança da informação e a autorização, ainda que indireta, para o tratamento indevido de dados pessoais.


Não há como olvidar os catastróficos vazamentos havidos no âmbito do Ministério da Saúde em 2020, com a exposição de dados sensíveis de milhões cidadãos brasileiros, e que ilustram o potencial danoso de regras tais, evidenciando vulnerabilidades técnicas ainda hoje existentes.


O Cadastro Base do Cidadão traduz inadmissível e escandalosamente abusivo banco de dados, um ‘catálogo’ de que constarão as mais diversas características dos cidadãos, como dados físicos, documentais, comportamentais, formato da face, voz, maneira de andar, impressões digitais – ou, para usar o texto do decreto, quaisquer dados relacionados aos fatos da vida das pessoas.


A regra traz preocupante (para dizer o mínimo) amplitude à norma, vez que basicamente qualquer informação – tais como convicções ideológicas, religiosas, atinentes à sexualidade, filiação política, time de futebol etc -, podem se inserir na noção de dados relacionados aos fatos da vida.


Trata-se de base com assombroso potencial de vigilância estatal quase que absoluta, passível de instrumentalização por pretensões antidemocráticas, autoritárias, sem a possibilidade de controle ou acompanhamento pela sociedade, imprensa, academia…


É um verdadeiro escândalo, um acinte e ameaça aos valores mais basilares, às garantias fundamentais e à cidadania.


Um retrocesso de séculos, para tempos em que o governante se via como ‘dono’ de seus ‘súditos’, sendo-lhe dado categorizá-los, manipulá-los, e restringir/extirpar seus direitos sem maiores critérios ou explicações.


Medida tão escandalosa – e perigosa – deve ser prontamente combatida e expelida do nosso ordenamento – objetivos a que se propõem duas ações em trâmite perante o STF: uma declaratória de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 695) e uma direta de inconstitucionalidade (ADI 6649).


A Corte Maior conta com precedente em que decidiu pela inviabilidade de compartilhamento de dados pessoais em hipóteses em que não evidente a sua necessidade, finalidade, adequação e respeito à intimidade – no caso, entre empresas prestadoras de serviço de telefonia móvel e fixa e o IBGE, com vistas a viabilizar uma mais efetiva produção estatística durante o estado emergencial decorrente da pandemia da Covid-19 (MP 954/2020, acatada pela ADI 6398/DF).


Trata-se, conforme exposto, de discussão fundamental à manutenção de garantias consagradas e alçadas à categoria de cláusula pétrea pela nossa Carta Maior (como o reconhecido direito fundamental à proteção de dados), a demandar, portanto, grande envolvimento da sociedade civil, que deve ser ouvida e participar ativamente do processo.


Não é razoável – nem jurídico, nem legítimo – que passemos a ser ‘classificados’, ‘categorizados’ de modo a viabilizar que órgãos estatais elaborem ‘listas’ por meio das quais identifiquem o cidadão brasileiro de acordo com suas características, preferências, crenças, ideologia etc.


A sociedade precisa reagir contra esse tipo de abuso – assim como as demais instituições.


Neste momento, a decisão está com o Supremo – que, esperamos, desempenhe o seu papel de guardião da Constituição e garante dos direitos fundamentais.


*Laura Mendes Amando de Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora-geral do Município de São Paulo


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac).


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