FERNANDO MENEZES DE ALMEIDA* 06 NOVEMBRO 2023 | 5min de leitura
Ao concluir a primeira parte da presente sequência temática sobre “impeachment”, que publiquei recentemente neste espaço, fixei a ideia de que pretendo, a partir do específico do regime constitucional brasileiro para o impeachment, sugerir a compreensão desse instituto jurídico: a) no presidencialismo vigente no Brasil; e b) comportando, sim, um julgamento de índole política do presidente da República pelo Poder Legislativo.
Continuo assim o desenvolvimento desses argumentos.
A Constituição Brasileira de 1988 adotou um regime presidencialista.
No entanto, esta é uma afirmação de cunho doutrinário – que, por certo, não se está a negar neste ensaio –, formulada a partir de análises que podem ser feitas sobre as normas constitucionais.
Dito de outro modo: não há afirmação, de caráter normativo, na Constituição de uma adesão a um modelo abstrato ou a um tipo ideal dito “presidencialismo”.
A própria expressão “presidencialismo” não aparece na Constituição, senão no artigo 2° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual previa o plebiscito entre “parlamentarismo ou presidencialismo”, que efetivamente houve em 7 de setembro de 1993 – com ampla vitória do presidencialismo.
De resto, a menção, em diversos dispositivos, à existência de um “presidente da República” não leva necessariamente à afirmação de um modelo típico de presidencialismo. Basta notar, comparativamente em outros países, situações em que existe um presidente da República e ainda assim fala-se em sistemas mistos (entre tipos ideais de presidencialismo e parlamentarismo).
Nem mesmo os limites materiais ao poder de revisão da Constituição (art. 60, § 4°) referem-se a “presidencialismo”, ainda que alguns o leiam implícito no limite atinente à separação dos Poderes (do que, diga-se de passagem, se discorda – mas isso não constitui o objeto deste ensaio).
Enfim, ainda que a Constituição houvesse lançado mão da expressão literal “presidencialismo”, um dado plenamente reconhecido entre juristas e cientistas políticos é o de que “presidencialismo” e “parlamentarismo”, enquanto designação de sistemas de governo, correspondem a tipos ideais.
Na realidade, haverá tantos sistemas (oscilando gradativamente entre as balizas definidoras desses tipos ideais) quantos estados houver.
Com esse argumento, portanto – retomando o fio condutor deste ensaio –, quer-se evidenciar a fragilidade da afirmação simplificadora sobre a simples existência de um “presidencialismo” permitir conclusões a priori sobre o modo de ser do processo de impeachment, com desconsideração do regime jurídico que concretamente tenha sido traçado para esse processo pelo direito positivo do país.
E esse argumento pode ser desdobrado para se recordar ainda que, do ponto de vista histórico, o impeachment justamente é instituto jurídico que promove uma ponte entre os modelos reais de presidencialismo e parlamentarismo (enquanto base da qual se extraíram os respectivos tipos abstratos).
Sim, porque o impeachment, originalmente uma figura de natureza penal integrante do direito inglês, foi o instrumento que, manejado pelo parlamento, ao tempo em que os monarcas já se valiam do apoio de um conselho de ministros para governar, induziu à prática pela qual a perda de confiança política do parlamento levava à renúncia do gabinete e, especialmente, do ministro que o liderava.
Como esclarece Manoel Gonçalves Ferreira Filho “ao contrário do presidencialismo, que é uma criação racional, o parlamentarismo é fruto de longa evolução histórica. Sua matriz foi a vida política britânica, no século XVIII”, partindo da monarquia limitada instaurada pela revolução de 1688.
Não sendo o caso de aqui retomarem-se os passos da evolução pelo qual surge progressivamente, a partir de sucessivos monarcas, a figura do primeiro ministro como chefe de governo, tem-se, em suma, a seguinte situação, nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“Entregue aos ministros sob a chefia de um deles, o governo era ainda o governo do rei, dependente de sua vontade, que poderia destituí-lo a qualquer instante. Ao Parlamento ia, porém, caber o passo seguinte. Ganhando audácia, foi ele aos poucos buscando senão impor a sua orientação, ao menos enquadrar dentro de certos limites a linha de ação do ministério. Para isso, usou ele do impeachment, ou de sua ameaça. O impeachment era um procedimento penal mas, não podendo o monarca agraciar os condenados por ele, não cabendo apreciação judicial das decisões nele tomadas, estava nas mãos do Parlamento caracterizar, ou não, a conduta de um ministro como criminosa.
“Desse modo, pôde o Parlamento obrigar os ministros de que dissentia a renunciar e mesmo todo o gabinete a demitir-se, pois cedo se instaurou solidariedade entre todos os membros do ministério, ao menos com respeito às decisões tomadas em conselho. Viram-se assim os ministros forçados a seguir a linha política predominante no Parlamento, sob pena de, perdendo a confiança deste, terem de demitir-se para salvar a pele”.
Com essa evolução, consolida-se institucionalmente o sistema que virá a ser chamado de parlamentarista. Todavia, nesse contexto, havendo normalmente a regra da confiança parlamentar a definir a permanência do governo, o impeachment torna-se desnecessário, restando reduzido à sua versão original penal – e ainda assim rumando para a obsolescência (por razões específicas do direito inglês que não vem ao caso aprofundar).
Desse modo, o impeachment cai em desuso na Inglaterra. Porém, vem a ser “salvo do esquecimento” pelo direito constitucional norte-americano, já adaptado ao presidencialismo.
O assunto continuará nas próximas publicações.
*Fernando Menezes de Almeida, professor titular da Faculdade de Direito da USP
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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