O Instituto Não Aceito Corrupção, associação civil nacional apartidária, tendo em vista retrocessos e prejuízos para as medidas de combate à corrupção e promoção da integridade pública advindos da eventual aprovação do PL 2914/22, vem à presença dessa C. Casa manifestar seu repúdio com relação a alguns dispositivos do texto atualmente em análise – de cuja construção foi a sociedade civil indevidamente alijada.
Realmente, e não obstante o início alvissareiro do referido processo legislativo, com interessantes e profícuas discussões democraticamente levadas a efeito, o texto substitutivo foi estruturado de forma opaca e impermeável à participação social – a qual se constitui em um dos grandes pilares do Estado de Direito.
A escandalosa abertura de brechas para o recebimento de ‘agrados’ e benesses a agentes responsáveis pela tomada de decisões a impactar os interesses dos seus patrocinadores, aliada a fundamentais limitações à transparência das relações público-privadas na defesa de interesses, são especialmente preocupantes.
Há, ainda, e infelizmente, dispositivos determinantes de dispensa de idêntico tratamento para situações tão distintas quanto a apresentação de pleitos de grandes conglomerados econômicos ou por estruturas profissionais, e o envolvimento de organizações da sociedade civil e cidadãos.
A necessidade premente de disciplina e regulamentação do lobby (inclusive pela OCDE), expediente historicamente arraigado na atividade legislativa brasileira – e pública em geral – não pode ser instrumentalizada de modo a autorizar a aprovação de um texto imaturo, autorreferenciado e, em última análise, que não leva em consideração as reais demandas, expectativas e necessidades da sociedade brasileira.
Nesse sentido, seguem alguns dos pontos dignos de especial atenção e revisão:
1. Subtração – ou aparente subtração – dos entes subnacionais da disciplina normativa.
Conforme se depreende do disposto nos artigos 1º, 4º, VI e parágrafo único, 12, 13 e 24, I a VI, todo o diploma direcionar-se-ia à esfera federal, excluídos os Estados, Municípios e Distrito Federal.
Mensagem oposta, porém, é transmitida pelos artigos 7º, §2º 24, VII e VIII, que, de forma inclusive contraditória, faz referência a esses últimos.
Considerada a premissa de que a disciplina das atividades de defesa de interesses atinentes ao relacionamento público-privado tem repercussão em todas as esferas federativas – pelas quais transitam diuturna e constantemente, inclusive, a maior parte dos atores com elas envolvidos – esperado, e desejável, que o texto se revestisse de abrangência nacional, com o estabelecimento de norte e orientação para todo o país.
A disciplina local ficaria incumbida de incorporar às regras gerais as demandas decorrentes das peculiaridades locais, em observância aos princípios da autonomia das instâncias federativas e subsidiariedade.
2. Caracterização da atividade profissional de representação de interesses profissionais como automática decorrência da habitualidade de seu exercício
A atividade objeto do PL, não obstante seja usualmente exercida, ao menos no imaginário dos cinéfilos, por grandes escritórios e burocratas especializados no assunto em defesa de grandes conglomerados econômicos, não raro se traduzem na mobilização e envolvimento de organizações da sociedade civil e instituições científicas e acadêmicas, com pontos de vista próprios e voltados à defesa da sociedade como um todo ou a de uma evidência científica em especial.
Tal cenário fica evidente ao avaliarmos os players cujo envolvimento já se projeta quanto às discussões atinentes à regulamentação das redes sociais, muitos deles com visões – e interesses – marcadamente contrapostos.
Nessa medida, inadequado nivelar, na classe de representante de interesses profissionais, com todas as consequências daí advindas, grandes grupos organizados e entidades/cidadãos que habitualmente se envolvem em processos participativos, de advocacy e discussões atinentes ao planejamento, concepção e alteração de políticas, estratégias de contratação públicas e estruturação de atos normativos.
Veja-se, por exemplo, agente público que, no exercício de sua liberdade acadêmica defende a aprovação/propriedade de regras atinentes à concessão de estratégias e protocolos de pesquisa. Conforme redação do artigo 7º do projeto, tal agente estaria impedido de advogar, ainda que em audiência ou consulta pública, o seu ponto de vista?
Poder-se-ia defender o afastamento dessa conclusão, pela redação do artigo 9º, IV (relativo à exposição de opinião técnica por pessoal que não participe do processo de decisão respectivo).
Tal excludente, porém, somente terá lugar nas hipóteses em que referido posicionamento tenha se dado em razão de solicitação de agente público – o que muitas (ou no mais das) vezes, não se verifica.
O mesmo lampejo poderia ser entrevisto a partir da redação do inciso VIII do artigo – o qual, porém, excepciona da condição de representante profissional quem comparece, tão somente, a sessão, audiência ou reuniões públicas, ou, ainda, a eventos abertos ao público em órgãos ou entidades públicas como exercício do direito de acompanhamento de atividades públicas, de participação social e de manifestação política.
A circunstância não abarca – ou traz ao menos uma dúvida razoável quanto abranger ou não – aqueles que, mais que comparecerem, participam, se manifestam, se envolvem e efetivamente se engajam nessas oportunidades.
Impõe-se, assim, idêntico tratamento a grandes empresas e escritórios especializados no acesso, trânsito burocrático e negociação de interesses com organizações estruturadas de forma não raro bastante precária e enxuta, com o objetivo de legitimamente defender e promover interesses coletivos.
Sob um outro ponto de vista, inadmissível a aplicação, em patamares idênticos, de eventuais penalidades a entidades precariamente estruturadas e com pouquíssimos recursos e grandes escritórios/empresas, com a consequente quebra igualdade e proporcionalidade daí advinda (até em razão dos ganhos potencialmente auferidos em um e outro cenário).
3. Comprometimento da transparência dos processos participativos – e, portanto, do respectivo controle social
O disposto no artigo 11, III, e IV do projeto traz previsão injustificada, insustentável e absolutamente incompatível com os princípios constitucionais da transparência, participação e controle social, ofendendo, em última análise, o próprio desiderato democrático.
Ao estabelecer o prazo de até dez dias úteis – da realização do evento ou gozo da hospitalidade - para a disponibilização ativa do respectivo registro quando envolvidos, na primeira hipótese, agentes referidos no artigo 13, o projeto subtrai da sociedade a possibilidade de impedir desvios e evitar desmandos (eventual controle a posteriori poderá até haver, mas tão somente após potencial aperfeiçoamento do dano...).
Da mesma forma, absolutamente importante para a garantia da transparência a divulgação integral dos documentos eventualmente apresentados, trocados ou conjuntamente construídos antes, durante ou como consequência dos encontros em que se dê a representação privada de interesses – em formato aberto, acessível e linguagem palatável ao cidadão médio.
Insta registrar, ainda, a importância da outorga de transparência a todas mensagens trocadas entre agentes públicos com potencial de influir no processo decisório e os representantes de interesses privados.
4. Absoluta falta de razoabilidade da fixação de prazo de 180 dias para a disponibilização do sistema eletrônico de registros e agenda
A fixação do referido prazo, a ser contado da publicação da lei, ignora completamente a existência de norma disciplinadora do referido sistema desde dezembro de 2021.
Com efeito, nos termos dos artigos 6º e seguintes do Decreto n. 10.889 (em pleno vigor), as informações referentes aos compromissos de autoridades, hospitalidades e presentes eventualmente recebidos, viagens patrocinadas e ausências já eram de publicação obrigatória no sistema e-agendas desde a sua edição.
Inescusável, portanto, a fixação de prazo tão extenso para a sua implementação – conclusão essa extensiva ao teor do artigo 13, §3º.
5. Autorização genérica para o recebimento de benesses, inclusive de atores interessados em decisões a cargo do agente contemplado
O artigo 16 do PL admite a oferta – e aceite – das ditas ‘hospitalidades legítimas’ por agentes públicos, ainda que incumbidos de decisões em que sejam interessados os ‘patrocinadores’ em questão.
Realmente, a infeliz redação do dispositivo leva à conclusão de que é vedada a oferta de bem, serviço ou vantagem indevida por agente privado que tenha interesse em decisão de agente público – se, e tão somente se, não forem classificadas como brinde, obra literária ou hospitalidades legítimas.
O conceito destas últimas consta do §2º do artigo: oferta de serviço ou pagamento de despesas com transporte, alimentação, hospedagem, cursos, seminários, congressos, eventos e feiras, no todo ou em parte, por agente privado, observadas algumas condições, dentre as quais se destaca a exigência de as circunstâncias sejam propícias à interação profissional (como se ao agente público somente fosse dado evoluir, aprender e se aprimorar em cenários tais, indispensavelmente coroados com tal nível de interação, como se a construção de networking fosse inerente à ação pública...).
Está-se diante, portanto, de surreal admissibilidade de custeio, por agentes privados e interessados diretamente, de benefícios como viagens de primeira classe, hospedagens em hotéis de luxo, ofertas de refeições em grandes restaurantes – bastando para tanto a ‘legitimidade’ da oferta, traduzida em interesse legítimo do órgão respectivo; possibilidade de interação profissional; valores compatíveis com outras ofertas análogas; preservação dos interesses institucionais do órgão/entidade; e custeio direto do ‘patrocinador’ ao fornecedor.
O potencial conflito de interesses e subversão de valores potencial é evidente e inevitável – e reclama, portanto, urgente revisão do dispositivo.
São Paulo, 16 de março de 2023.
Diretoria Executiva e Conselho Superior do
Instituto Não Aceito Corrupção
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