Vanessa Gonçalves Alvarez*
O combate à corrupção na União Europeia e a proposta de diretiva 2023/0135 do Parlamento Europeu
As consequências da corrupção são sempre difíceis de quantificar, mas, segundo a Câmara de Comércio Internacional, a Transparência Internacional, o Pacto Global das Nações Unidas, o Fórum Económico Mundial e a publicação “Clean Business is Good Business”, a perda de riqueza econômica devido à corrupção representa 5 % do PIB a nível mundial.
O arcabouço europeu de combate à corrupção é permeado pela confluência e influência da legislação nacional dos Estados-membros, assim como, reciprocamente, pelas reverberações da ordem internacional. A diretivas europeias ditam as regras mínimas a serem respeitadas pelas legislações nacionais, mas não é simples o diálogo de legiferação europeia e nacional.
Em 1997 foi ratificada a Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários da União Europeia - UE ou dos Estados-Membros da UE. A norma, estabelecida com base no n.o 2, alínea c), do artigo K.3 do Tratado da União Europeia, visa assegurar que cada país da UE adote as medidas mínimas para criminalizar a corrupção envolvendo funcionários públicos e de reforçar a cooperação judiciária entre os países da UE nesta luta. O texto também delimita regras de cooperação e jurisdicionais, além de impor o respeito ao princípio ne bis in idem e observar que em caso de litígio entre países da UE sobre a interpretação ou aplicação da Convenção, e na ausência de uma resolução mútua, o caso deve ser analisado pelo Conselho europeu, tal como estabelecido no título IV do Tratado da União Europeia.
Em 1999 foi criado o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) pela Decisão 1999/352/CE com o principal objetivo de investigar casos de corrupção e faltas graves no âmbito das instituições da União Europeia (UE), assim como casos de fraude lesiva do orçamento da UE. O quadro jurídico que define os poderes e as competências do OLAF é o Regulamento (UE, Euratom) n.o 883/2013. No último relatório anual elaborado pelo OLAF em 2022, se verificou que mais de 426 milhões de euros foram recuperados, 44 recomendações judiciais foram expedidas, além da instauração de mais de 192 inquéritos.
Em 2002 foi aprovada a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa com a previsão de medidas complementares de direito penal e uma cooperação internacional mais eficaz. A Convenção está aberta à adesão de Estados não membros e a sua aplicação é controlada pelo “Grupo de Estados contra a Corrupção - GRECO[1]”, que entrou em funcionamento em 1 de maio de 1999.
Em 2003, a Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho Europeu entrou em vigor e estabeleceu requisitos relativos à criminalização da corrupção no setor privado, notadamente, com as seguintes questões: i) a previsão da definição de “pessoa coletiva” e “violação de dever”; ii) conceitos relativos à corrupção ativa e passiva no setor privado; iii) “mandados de criminalização” no que concerne à punição da instigação, auxílio e cumplicidade em atos de corrupção; iv) sanções aos Estados-membros; v) responsabilidade das pessoas coletivas e vi) competência para a aplicação das sanções.
Em 2005 entrou em vigor a Convenção das Nações Unidades de combate à corrupção – UNCAC. Neste processo contínuo de aperfeiçoamento europeu no combate à corrupção, pela decisão n˚ 2008/801/CE os Estados-membros autorizaram a UE a assinar a Convenção a fim de estabelecer standards básicos para a adoção de políticas e práticas de prevenção, aplicação de códigos de conduta para funcionários públicos e regras relativas à contratação pública. Além disso, o texto convencional recomenda um maior accountability e estabelece um “mandado de criminalização” aos Estados-membros quanto às seguintes infrações penais: i) suborno de funcionários públicos estrangeiros e de funcionários de organizações internacionais públicas; ii) tráfico de influências (quando uma pessoa com influência sobre outras pessoas troca essa influência por dinheiro com uma pessoa que procura influência) e iii) enriquecimento ilícito.
Posteriormente, em 2009, o Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE, passou a prever em seu artigo 83.o, n.o 1, a corrupção como um dos crimes de dimensão transfronteiriça particular a permitir ao Parlamento Europeu e ao Conselho o estabelecimento de regras mínimas para a definição de corrupção por meio de diretivas adotadas de acordo com o processo legislativo ordinário.
Em abril de 2014 foi lançada a PACE – plataforma anticorrupção que reúne representantes eleitos dos parlamentos dos 47 Estados-membros do Conselho da Europa e de países terceiros, com peritos e outras partes interessadas para partilhar informações, divulgar boas práticas e debater a forma de lidar com novas formas de corrupção.
No mesmo ano foi editada a DIRETIVA 2014/42/UE do parlamento europeu e do conselho com regras mínimas sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia sobre a definição de conceitos, e, notadamente, sobre a definição de “perda alargada”, na hipótese em que um tribunal, com base nas circunstâncias do caso, inclusive em factos concretos e provas disponíveis, decidir a respeito da desproporcionalidade em relação ao rendimento legítimo da pessoa condenada.
No entanto, estes instrumentos não foram suficientemente abrangentes, o que demonstrou a necessidade de regras nacionais específicas para assegurar uma resposta mais coerente e eficaz. Igualmente, surgiram lacunas na aplicação da legislação europeia a nível nacional, além de obstáculos à cooperação entre as autoridades competentes nos diferentes Estados-membros[2] concernentes à duração excessiva da ação penal, os prazos de prescrição curtos, as regras em matéria de imunidade e privilégios, a disponibilidade limitada de recursos, a formação e os poderes de investigação, para citar alguns exemplos.
O Rule of Law Repport de 2022 publicou as seguintes recomendações aos Estados-membros: i) à Bulgária, a adoção de instrumentos de transparência e accountability; ii) à República Tcheca, a adoção de medidas para reduzir a duração dos processos e sentenças definitivas em casos de corrupção de alto nível; iii) à Grécia, para aumentar os esforços para estabelecer um registro sólido de ações judiciais e sentenças definitivas em casos de corrupção; iv) à Espanha, de registrar os desafios relacionados com a duração das investigações e dos processos judiciais, a fim de aumentar a eficácia do tratamento dos casos de corrupção de alto nível; v) à França, o aumento da transparência da propriedade dos meios de comunicação social, em especial no que diz respeito às estruturas acionistas complexas, com base nas salvaguardas jurídicas existentes; vi) à Itália, o desenvolvimento de melhores instrumentos de independência judicial e ministerial e o prosseguimento das operações eficazes da polícia e do Ministério Público contra a corrupção de alto nível, nomeadamente através do reforço da digitalização e da interconexão dos registos; vii) à Lituânia, o início da implementação da agenda anticorrupção de 2022-2023; viii) à Malta, o enfrentamento dos desafios relacionados com a duração das investigações de casos de corrupção de alto nível, nomeadamente através do estabelecimento de um registro sólido de sentenças definitivas e ix) à Portugal, de assegurar recursos suficientes para a prevenção, investigação e repressão da corrupção, nomeadamente garantindo a rápida operacionalização do novo mecanismo de luta contra a corrupção.
Devido às diversas lacunas ainda existentes no cenário europeu, conforme demonstrou o relatório publicado em 2022, foi editada, em maio de 2023, a proposta de diretiva do parlamento europeu e do conselho relativa à luta contra a corrupção, que substitui a Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho e a Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros da União Europeia e que altera a Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho.
Segundo os dados do Observatório Legislativo do Parlamento Europeu, o texto já possui parecer do Comitê Econômico e Social e a última discussão sobre o texto (em primeira leitura) ocorreu no Conselho do Parlamento Europeu em 04 de dezembro deste ano, pendendo de aprovação definitiva.
Segundo a proposta da nova diretiva, as práticas anticorrupção da UE deverão ter em conta os trabalhos do Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO) do Conselho da Europa, da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) e do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e a Criminalidade (UNODC). Entre 2016 e 2021, a Eurojust registrou 505 casos de corrupção transfronteiriça, com um aumento constante ao longo deste período de cinco anos, o que confirma que a corrupção é um fenómeno transfronteiriço em crescimento gradual na UE. Um estudo recente publicado pela Comissão Europeia concluiu que “a falta de um quadro europeu coerente que inclua disposições para todos os crimes relacionados com a corrupção identificados pelas normas internacionais constitui uma fonte de desafios legislativos e operacionais no combate aos casos de corrupção transfronteiriça”.
Em consulta realizada com os Estados-membros a respeito da eficácia das diretivas europeias de combate à corrupção foi constatada a necessidade de: i) harmonizar plenamente a tipificação dos crimes de corrupção e as sanções para tornar mais célere a cooperação transfronteiriça eficaz no exercício da ação penal contra os crimes de corrupção; ii) observar que uma transposição mecânica do crime de enriquecimento ilícito, tal como definido na UNCAC, seria contrária à presunção de inocência e às tradições constitucionais dos Estados-Membros e iii) prever a prevenção da corrupção, com a inclusão de sanções como a inelegibilidade para concorrer ou exercer cargos públicos ou participar em concursos para financiamento público, e refletir a importância de organismos especializados de luta contra a corrupção, com independência, formação e recursos suficientes.
O relatório Strengthening the fight against corruption: assessing the EU legislative and policy framework (Reforço da luta contra a corrupção: avaliação do quadro legislativo e de políticas da UE), que foi a base utilizada para a elaboração da proposta da diretiva, analisou as lacunas do quadro legislativo da UE no domínio da prevenção e repressão da corrupção e formulou recomendações com a adoção de: i) regras mínimas comuns para a definição de crimes de corrupção; ii) sanções conexas, a par de regras comuns para melhorar a investigação e o exercício da ação penal contra os crimes de corrupção em todos os Estados-Membros (por exemplo, reforçando a comunicação de informações, harmonizando as abordagens em matéria de imunidade e de prescrição, bem como de facilitadores da corrupção).
O estudo demonstrou que mais de dezessete Estados-membros da EU não preveem a tipificação do crime de enriquecimento ilícito e dois não penalizam o tráfico de influência. No que concerne aos prazos de prescrição dos crimes de corrupção se verificou que, para o suborno no setor público, a média varia entre 11 e 14 anos, enquanto para o suborno no setor privado, a média varia entre 10 e 11,5 anos. Ao mesmo tempo, há diferenças consideráveis entre as legislações dos Estados-Membros: para o suborno no setor público e privado, os prazos mínimos e máximos de prescrição variam entre três anos em Estados-Membros como a Chéquia ou a Lituânia e 25 anos na Polónia.
Por fim, a proposta de diretiva visa suprir as lacunas apresentas pelos estudos supramencionados e, se aprovada ainda neste ano, introduzirá regras mínimas sobre: i) o nível das sanções, em conformidade com o princípio da proporcionalidade conforme a natureza da infração; ii) a consideração das sanções administrativas na condenação da pessoa por uma infração penal e iii) o estabelecimento de procedimentos para a suspensão ou reafetação temporária de um funcionário público acusado de uma infração referida no texto.
*Vanessa Gonçalves Alvarez é advogada, mestre em Direito Público e titular de LL.M em Direito francês e europeu pela Université Paris 1 Panthéon – Sorbonne
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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