LAURA MENDES AMANDO DE BARROS 15 MAIO 2024 | 5min de leitura
O atual estágio de desenvolvimento jurídico, social, político e tecnológico resulta de anos de discussão quanto aos limites e núcleo fundamental dos direitos relacionados à dignidade.
Inúmeros tratados foram redigidos sobre o tema, e devidamente incorporados ao ordenamento brasileiro: Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher...
Filmes, livros, peças de teatro e outras manifestações artísticas colocaram a discussão em foco, à exaustão – desencadeando como reação conservadora acusações e fervorosas alegações de abuso do politicamente correto, censura e limitação da liberdade de expressão com vistas à garantia de direitos de grupos vulneráveis (“minorias”) aos quais se estaria destinando tratamento privilegiado.
Objetivamente, porém, há ainda muitos desafios a superar: segundo estudo da International Idea (organização sediada na Suécia, integrada por 34 países e dedicada ao estudo e avaliação da democracia), as mulheres representam apenas 26,7% dos parlamentares ao redor do mundo; 35,5% dos representantes eleitos, e 22,8% dos ministérios. Apenas 26 países contam tem chefe de Estado/Governo do sexo feminino[1].
Ainda, os fundamentos da democracia estão enfraquecendo em termos globais, com metade dos países em declínio democrático[2]
Diante desse cenário, em que a falta de pudor em julgar, ofender, diminuir e agredir o próximo denota desumanização e embrutecimento para muitos chocante, merecem destaque os questionamentos formalmente apresentados ao Decreto federal 11.795/23.
O Decreto federal 11.795/23
Trata-se de diploma regulamentar da Lei 14.611/23, nacional, sobre igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres.
Impõe obrigatória publicação na internet e redes sociais, por empresas com 100 ou mais funcionários, de relatórios de transparência salarial – sob pena de multa em até 3% da folha de salários, limitada a 100 salários-mínimos, além de outras penalidades pecuniárias, caso identificada discriminação salarial em razão de gênero.
O alvissareiro diploma traduz preocupação com evidente – e inadmissível – discriminação quanto ao trabalho feminino, não raramente subvalorizado e desrespeitado (ainda).
A surpresa (ao menos dos que compartilham da noção de igualdade entre os seres humanos e suas inerentes garantias fundamentais) fica por conta do seu questionamento judicial, pelo Sindicato Intermunicipal das Indústrias do Vestuário do Paraná e pela FIEMG - Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais.
O primeiro impetrou mandado de segurança coletivo pedindo suspensão dos efeitos do ato normativo – denegado por impossibilidade jurídica do pedido, nos termos da Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal (segundo a qual não cabe MS contra lei em tese).
A Federação propôs ação civil pública, ainda pendente de julgamento, em que a tutela antecipada foi denegada[3].
O argumento central de tais ações é a suposta ofensa à LGPD, com comprometimento do direito fundamental à proteção de dados consagrada recentemente (2022) no inciso LXXIX do artigo 5º da Constituição Federal.
Insta registrar que a própria Lei 14.611 já disciplinou questões atinentes à proteção de dados pessoais, ao determinar que os relatórios deverão observar a LGPD, devendo os dados ser anonimizados e permitir comparação objetiva entre remunerações e proporção de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens.
Devem contemplar, ainda, estatísticas sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade.
A falaciosa, artificial e mal-intencionada contraposição entre as garantias – isonomia e intimidade – revela, para além de ausência de senso de proporcionalidade, absoluta incompreensão do sistema constitucional de direitos e garantias.
A instrumentalização da LGPD já havia sido detectada em outras ocasiões, inclusive pelo governo federal, que, conforme levantamento da Fiquem Sabendo, a invocou como justificativa (inadequada) em 25% dos pedidos de acesso à informação apresentados entre janeiro de 2019 e de 2022[4].
Neste ano, o prazo para disponibilização dos relatórios se esgotou no dia 08 de março último, havendo a integralidade das empresas (49.704) atendido ao dever legalmente estabelecido, conforme informações do Ministério do Trabalho e Emprego.
Os dados preliminares indicam que só 35% das empresas têm adotado políticas para mulheres em cargos de direção e gerência – contexto esse compatível com os retrocessos democráticos detectáveis no nosso país, de forma mais marcante, desde 2016, conforme relatórios da V-Dem[5].
A vedação à remuneração diferenciada em razão de gênero é premissa básica de qualquer democracia que se pretenda minimamente consolidada – condição da qual o Brasil vem paulatinamente se afastando.
Conclusões
Em um país em que de bancos universitários de primeira linha ecoam palavras preconceituosas e de baixo calão, perante a inestimável audiência virtual que acompanhava de lançamento de livro de Direito Administrativo, a banalização da discriminação como que passa desapercebida.
Não se pode imaginar uma democracia sem isonomia e respeito a todos e todas.
A provocação do Judiciário com vistas a afastar norma voltada à transparência, controle, accountability e, em última análise, à garantia da isonomia, soa trágica.
Afinal, parece nossa caminhada enquanto sociedade vem se direcionando ao passado.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
Kommentare