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O 'enriquecimento ilícito por aquisição desproporcional de patrimônio' na improbidade administrativa

Por José Roberto Pimenta Oliveira*

13/02/2023 | 05h00


Em sintonia com os alicerces republicanos do nosso Estado Democrático, o direito brasileiro, pelo menos desde 1992, com a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), procura enfrentar uma situação gravíssima de prática corrupta na Administração Pública. A referência aqui é a proibição de que agentes públicos venham adquirir no exercício de função pública bens cujos valores seja m desproporcionais à evolução do patrimônio ou à renda auferida no setor público.


Esta proibição, desde a Lei nº 8.429/1992, vem estampada como modalidade específica de improbidade administrativo. Ninguém pode contestar que ostentar níveis elevadíssimos de patrimônio ou riqueza - inadequados aos parâmetros remuneratórios da função pública - é fato corriqueiramente noticiado na sociedade brasileira, e revela gravíssimo atentado à moralidade administrativa, na medida em seja fruto de ganhos ou benefícios ilícitos explicáveis em razão do exercício da função pública. Propriedade de exercentes, sem origem gabaritada pelo direito, obtida em nome próprio ou terceiros, exige providências imediatas, porque não raro estão ligadas à pratica de recebimento de vantagens indevidas ou propinas.


A gravidade desta conduta e necessidade de sua repreensão já é consenso na América. A Convenção Anticorrupção da OEA (Decreto 4410/2002), em seu artigo IX, já demonstra isto: "aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo sua renda legítima durante o exercício de suas funções e que não possa justificar razoavelmente", tal conduta deve ser legalmente coibida. A Comunidade Internacional também luta contra esta patologia. A Convenção Anticorrupção da ONU (Decreto 5687/2006) exige que Estados-Partes criminalizem "o incremento significativo do patrimônio de um funcionário público relativos aos seus ingressos legítimos que não podem ser razoavelmente justificados por ele". Mérida acerta o alvo: este enriquecimento ilícito é "nocivo para as instituições democráticas, as economias nacionais e o Estado de Direito".


Atente-se que a conduta ilícita descrita envolve a ilicitude de patrimônio incompatível, e não está atrelada à demonstração de práticas ilegais isoladas, específicas, de exigência ou recebimento de vantagens indevidas pelo agente público. Não poderia ser diferente: recebimento de propinas, referidas a atuação funcional específica, há muito é condenável. O avanço na legislação anticorrupção brasileira (LIA, art. 9º, inc. VII) e sistema internacional anticorrupção está em legitimar uma reação sancionatória adequada, necessária e proporcional, em face de situação patrimonial contrária à variação remuneratória regular do agente público, independente de seu vínculo com atos de corrupção.


Além de não prosperar a aprovação de lei federal sobre a responsabilidade penal atinente ao fato até o momento, através da Lei nº 14.230/2021, a União Federal praticamente retirou toda funcionalidade própria do inciso VII no repúdio à improbidade administrativa. Ao incluir na tipificação a expressão "em razão de", o legislador pretendeu exigir a demonstração cabal de vínculo objetivo entre o patrimônio injustificado e determinado exercício funcional. Neste sentido, a doutrina inclusive tem suscitado a ocorrência de novatio legis in mellius, e defendido inclusive sua aplicação retroativa.


Se prevalecer este entendimento no Poder Judiciário, haverá indiscutível retrocesso no enfrentamento do enriquecimento ilícito, servindo o novo modelo tipificador de incentivo grandioso a práticas corruptivas: quando mais sofisticadas tais práticas se tornarem e maiores dificuldades de prova ensejarem na sua apuração e demonstração, agentes ilicitamente enriquecidos se livrarão da responsabilidade da LIA, já que a situação intolerável da incompatibilidade patrimonial já não será condição necessária e suficiente de imputação.


Há necessidade de controle de constitucionalidade sobre esta mudança de direito material. Em diversas ocasiões, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou e apontou vícios de normas aprovadas no bojo da Lei nº 14.230, à luz dos princípios e regras constitucionais (ADI 7042, 7043, 7156, 7236 e 7237, e Tema 1.199, em repercussão geral em RE-Agr 843.989).


Em verdade, a Lei 14.230 sorrateiramente revogou o artigo 9º, inciso VII, ao impor a exigência da relação acima apontado, o que contraria substancialmente o modelo anterior. Vetor normativo antitético ao anterior. Sorrateiramente porque o novo dispositivo esconde seu intento objetivo de negar a responsabilização para as circunstâncias gravíssimas nele descrito, que desde a redação originária da LIA, em 1992, está entre os instrumentos mais eficazes de tutela do interesse público, como depois se confirmou nas Convenções de Caracas e de Mérida.


A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sedimentada ao longo dos anos, reconheceu a validade do tipo, e, logo, sua aptidão dentro da sistemática da LIA. Para a Corte, "(n)a apuração do ato de improbidade, previsto no art. 9º, VII, da Lei 8.429/92, cabe ao autor da ação o ônus de provar a desproporcionalidade entre a evolução patrimonial e a renda auferida pelo agente, no exercício de cargo público. Uma vez comprovada essa desproporcionalidade, caberá ao réu, por sua vez, o ônus de provar a licitude da aquisição dos bens de valor tido por desproporcional", como assentado no AgRg no AREsp 548901-RJ (2ª Turma, Rel. Min. Assusete Magalhães, j. 16.02.2016), no qual há farta indicação jurisprudencial. "Não há, portanto, no fato típico ímprobo a imposição de que a origem do incremento patrimonial esteja relacionada com desvios no exercício do cargo, o que denota que a hipótese legal considera o simples ato genericamente doloso de ostentar patrimônio incompatível com a renda auferida e não justificado legalmente como ato grave violador do princípio da moralidade administrativa" (1ª Seção, MS 21708-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/Acórdão Herman Benjamin, j. 08.05.2019).


Há, por conseguinte, clara ofensa ao princípio da proporcionalidade no novo dispositivo, na redação da Lei 14.230, na exata medida em que o novo tipo material não possui idoneidade ou adequação para cumprir a sua funcionalidade, no campo do Direito Administrativo Sancionador Anticorrupção, no Brasil. Enquanto não reconhecida esta desconformidade com a Norma Fundamental, impõe-se seja aplicado à luz das Convenções Anticorrupção internalizadas pelo ordenamento nacional. A seguir a orientação firmada no recente Recurso Especial nº 1.923.138-RJ (2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 20.09.2022), a Corte Superior assegurará a efetividade da tutela da improbidade, preconizada pelo artigo 37, parágrafo 4º da CF.


Não bastasse a alteração de direito material acima criticada, a Lei 14.230 também dispõe, no novo art. 9º, inc. VII, que seja "assegurada a demonstração pelo agente da licitude da origem dessa evolução". Trata-se de norma processual, e, logo, destinada a vigorar nos procedimentos e processos, administrativos e judiciais, em que há apuração do fato ilícito imputado ao agente público. Em processos disciplinares e ações civis públicas de improbidade, é incontestável que há incidência dos princípios da ampla defesa e do contraditório.


A dificuldade do dispositivo processual está em pretender fundar nele respaldo geral para consagração legal da ampla defesa e contraditório, em quaisquer procedimentos de natureza inquisitiva, no bojo dos quais se faz apuração preliminar e não-contraditória do ilícito. Isto tem especial relevância para o principal titular da ação civil pública de improbidade, o Ministério Público, que investiga e apura atos ofensivos ao patrimônio público e social, em inquérito civil, nos termos do art. 129, inc. III da CF.


Não pode lei nacional em matéria de improbidade reescrever a natureza de instituto constitucionalizado essencial à apuração preliminar de ilícitos, não raro com tramitação sigilosa. Talvez por esta razão a nova redação não ousou citar o contraditório e ampla defesa. Mas sua linguagem também neste caso conduz ao mesmo lugar: o novo dispositivo do artigo 9º, inciso VII, teve sua aptidão esvaziada para tutelar o interesse público anticorrupção, e pretende abalar a capacidade estatal investigativa do ilícito nele plasmado.


*José Roberto Pimenta Oliveira é professor de Direito Administrativo, dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da PUC-SP, e Membro do Ministério Público Federal


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

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