Antes mesmo do lançamento oficial em 2 de setembro, notas falsas de R$ 200 já circulavam em Madureira, no Rio de Janeiro. No dia 11, várias notas verdadeiras já eram encontradas durante operação do Ministério Público e da Polícia Civil que apreendeu R$ 15 mil com uma quadrilha especializada em roubos de carga no estado. Já no dia 29, a Polícia Federal desbaratava no Triângulo Mineiro o primeiro laboratório de falsificação da nova cédula. Na operação de ontem contra o senador Chico Rodrigues (DEM/RR) muitos lobos-guará foram novamente avistados, inclusive lá, entre suas nádegas.
No meio do ano passado, representantes de mais de uma dezena de entidades dedicadas à promoção da integridade, dentre as quais Instituto Não Aceito Corrupção, Transparência Partidária, Transparência Brasil, Instituto Ethos e Observatório Social do Brasil, reuniram-se com a Diretora de Administração do Banco Central para pleitear o encerramento da produção e a gradual retirada de circulação das notas de R$ 100.
A Diretoria de Administração do BC respondeu dizendo que “(…) já há estudos em andamento neste Banco Central sobre essa possibilidade”, mas pouco mais de um ano depois veio o inesperado anúncio da criação da nota de R$ 200 e o banco impôs sigilo aos documentos que teriam embasado a decisão.
A autoridade monetária alegou incialmente que a nova cédula seria apenas uma ação preventiva contra uma possível falta de numerário em razão do aumento do entesouramento de papel moeda verificado após a diminuição das atividades econômicas decorrente da pandemia. E informou que a decisão havia sido autorizada pelo Conselho Monetário Nacional, composto somente pelo presidente do Banco Central e pelo ministro da Economia.
Mas, se é verdade que a pandemia aumentou o estoque de dinheiro vivo, também é verdade que tem acelerado a digitalização das mais diversas atividades. Uma pesquisa de âmbito nacional da Plano CDE do início de setembro mostrou que houve crescimento no uso de pagamentos eletrônicos em todas as classes sociais durante o isolamento social e que, para quantias acima de R$ 10, pagamentos eletrônicos já são mais frequentes que transações em dinheiro.
Essa pesquisa também constatou que 68% dos brasileiros têm a correta percepção de que “a medida facilita a corrupção e o crime organizado, que fazem negociações com dinheiro vivo e terão mais facilidade para esconder e transportar o dinheiro”.
Por isso, as melhores práticas internacionais e os maiores fóruns de combate à corrupção e ao crime organizado recomendam a restrição ao uso de bilhetes de alto valor, inclusive o Grupo de Ação Financeira Internacional, o GAFI, que conta com a participação do governo brasileiro.
O Banco Central Europeu, por exemplo, interrompeu em 2018 a produção de notas de 500 euros, medida que foi sugerida e apoiada pelo Organismo Europeu de Luta Antifraude depois que um levantamento do governo do Reino Unido estimou que 90% das cédulas de 500 euros emitidas no país estavam nas mãos do crime organizado.
Na mesma linha, um estudo de 2015 do economista americano Kenneth Rogoff mostrou que as notas de US$ 100 concentravam quase 80% do valor total dos dólares em circulação no planeta, mas que a maior parte desses bilhetes é usada em transações ilegais, o que fez o secretário do Tesouro durante a gestão Obama, Lawrence Summers, passar a defender publicamente a retirada de circulação das notas de 100 dólares.
No Brasil, cerca de metade do valor total de papel moeda em circulação, que em 2019 somava pouco mais de R$ 280 bilhões, está concentrado em cédulas de 100, mas raramente alguma garoupa cai na rede, ou melhor, no bolso, da maioria da população do país, como mostra um relatório de 2018 do próprio BC, que revelou que 85% dos brasileiros costumam portar quantias inferiores a R$ 100 em espécie.
Na outra ponta, a rotina de apreensões de dinheiro vivo no Brasil confirma a forte preferência do crime organizado pelas maiores notas. De acordo com a Casa da Moeda, cada nota de real pesa 0,25 grama. Assim, R$ 1 milhão em notas de R$ 100 pesam 2,5 kg. Em notas de R$ 50, dobra-se não só o peso, mas também o volume que a quantia ocupa. Retirar de circulação as notas de R$ 100 significaria, portanto, pelo menos dobrar as dificuldades para a movimentação clandestina de papel moeda.
O inverso, contudo, também é verdadeiro. A nota de R$ 200 favorece o transporte e a ocultação de valores mais altos, até mesmo lá, nos lugares mais insuspeitos, beneficiando indivíduos e organizações criminosas que movimentam dinheiro obtido em atividades como corrupção, tráfico de drogas, de armas, evasão de divisas e contrabando, transações que são feitas fora do sistema bancário, em dinheiro vivo, e, de preferência com cédulas de maior valor.
A nota de R$ 200 também deve ter impacto negativo sobre a segurança pública, uma vez que a possibilidade de armazenar e transportar valores mais altos em espaços menores também aumenta a atratividade para quadrilhas especializadas em roubos a caixas eletrônicos e transportadoras de valores. A digitalização da economia diminui esse tipo de ocorrência, mas ao estimular o uso de dinheiro em espécie, a nota de R$ 200 contraria a própria agenda de modernização do BC, uma vez que entra em circulação às vésperas do lançamento do sistema de pagamentos instantâneos que poderá provocar um grande salto nas transações eletrônicas, aumentando a formalização da economia e a capacidade fiscalizatória do poder público.
Correm na Justiça pelo menos duas ações contra a nova cédula. Uma de autoria da Defensoria Pública da União e a Organização dos Cegos do Brasil , que alegam que a nota de R$ 200 não é acessível e pedem que sua confecção seja suspensa. Outra ação, de autoria dos partidos Rede, PSB e Podemos, questiona no Supremo Tribunal Federal os impactos do bilhete para segurança pública e o combate à corrupção e ao crime organizado.
Melhor mesmo que o STF proíba a impressão de novos lotes da nota de R$ 200 ou fixe uma data limite para sua validade, que pode ser vinculada à normalização do entesouramento ou mesmo à expectativa de vida útil da cédula. Não se trata de querer encurralar o mais novo e simpático integrante da nossa fauna monetária, mas sua presença tão constante em locais impróprios não deixa dúvidas de que ele é muito prejudicial para os esforços de combate à corrupção e ao crime organizado no país. Do contrário, lobos-guará abundarão por muito tempo ainda nos anais do combate ao crime no Brasil.
Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor-executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil.
Comentários