José Mauricio Conti*
21 de novembro de 2022 | 05h00
Há mais de um ano o tema do “orçamento secreto” ocupa espaço destacado na mídia e chama a atenção de todos. Um tema técnico, específico do processo legislativo orçamentário, mas que tem assumido enorme relevância. Apareceu em reportagem do jornalista Breno Pires em O Estado de S. Paulo em 8 de maio de 2021, em que denunciava um esquema de compra de apoio no âmbito do Congresso por meio de um “novo tipo de emenda do relator-geral do orçamento, a chamada RP 9”, também referido como “tratoraço” ou “orçamento secreto”.
Volta com mais intensidade ao debate nos últimos dias, justamente por estarmos no período em que se debatem no Congresso Nacional as emendas parlamentares ao orçamento federal, e nesse ano a alternância do poder no âmbito do Poder Executivo federal torna a questão ainda mais delicada.
E muito se fala da ligação do “orçamento secreto” com a corrupção, objeto para o qual este espaço aberto na mídia tem papel destacado. Lembrando ainda que o próximo dia 9 de dezembro é o Dia Internacional de Combate à Corrupção, torna-se oportuno deixar mais claro o assunto, permitindo que todos possam compreendê-lo e participar de forma mais qualificada do debate.
A lei orçamentária federal, que define onde e como os recursos sob gestão da administração pública federal serão gastos, é ato de iniciativa do Presidente da República, a quem cabe apresentar o projeto e encaminhar ao Congresso Nacional. Recebido o projeto de lei orçamentária, este pode ser alterado nos termos da legislação vigente pelo Congresso Nacional, o que é feito por meio de emendas parlamentares.
O aumento da participação do Congresso Nacional na lei orçamentária cresceu bastante nos últimos anos, em face de várias emendas constitucionais que se sucederam. No aspecto quantitativo, pelo aumento dos valores envolvidos. E no qualitativo, com a “impositividade” de boa parte das emendas, que passaram a ser de execução obrigatória – uma vez inseridas no orçamento, devem ser cumpridas. Isto fez com que passassem a ser mais cobiçadas, fazendo crescer sua importância junto aos parlamentares.
Essas emendas são o legítimo instrumento que permite aos deputados e senadores participar do processo legislativo de elaboração da lei orçamentária, em um dos momentos mais relevantes da atuação parlamentar. Devem refletir o desejo de seus eleitores e do povo brasileiro como um todo em relação à definição dos gastos públicos.
Critica-se, e não sem razão, que, ao invés de propostas de relevo para condução das grandes políticas públicas, sejam destinadas a atender demandas pontuais e de natureza paroquial. Uma evidência que mostra ser necessário o aperfeiçoamento desse processo.
Há basicamente quatro tipos de emendas: as emendas individuais, atribuídas a cada senador ou deputado; as emendas de bancada, que são apresentadas coletivamente pelos deputados e senadores; as emendas de comissão, oriundas das comissões técnicas da Câmara e do Senado; e as emendas de relator, de responsabilidade do relator-geral da lei orçamentária. Do montante destinado ao conjunto das emendas parlamentares, pelas regras e decisões políticas internas do Congresso, distribuem-se os valores entre essas várias espécies de emendas, que, em sendo acolhidas pela Comissão Mista de Orçamento e aprovadas em decisão plenária, passam a integrar e compor a lei orçamentária, uma vez sancionada e publicada. As regras de transparência obrigam a que todos esses atos sejam públicos.
Há, no entanto, um déficit de transparência que tem sido observado nas emendas de relator, referidas pela sigla RP 9, o que já foi reconhecido pelo STF no âmbito da ADPF 854. Essas emendas têm por função apenas e tão somente fazer pequenos ajustes na finalização do projeto de lei orçamentária, a fim de que esta possa cumprir todos os requisitos legais e contábeis e deixá-la apta para ser aprovada.
Porém, tem-se observado que, contrariamente às normas internas do Congresso, estão abrangendo e acolhendo as demais emendas parlamentares, que deveriam ser apresentadas pelas outras formas previstas para a apresentação das referidas emendas, mas não o são.
E por que isso ocorre?
São várias as razões que se especula como justificadoras dessa prática.
Uma delas é o aumento de poder para o relator da Comissão Mista no Congresso responsável pela apreciação do projeto de lei orçamentária, que poderia usar de seu poder discricionário em acolher ou não as emendas apresentadas.
A outra é a que mais diretamente se relaciona com o que justificou a alcunha de “orçamento secreto”. Muitos parlamentares têm interesse em propor emendas ao orçamento, mas não desejam “assumir a autoria” das emendas. Inserindo-as como emendas de relator, este passa a ser o autor da emenda, ocultando de todos quem seja realmente o responsável de fato pela sua inclusão. Esse o principal ponto em que está o aspecto “secreto” desse processo orçamentário. Está-se diante de uma emenda, que destina recursos para determinada despesa, sem que se saiba exatamente quem tenha sido o(s) parlamentar(es) que, de fato, a tenha apresentado para inserção no orçamento.
Onde entra a corrupção nesse processo todo?
São várias – e no mais das vezes obscuras – as razões que levam um parlamentar a propor destinação de recursos públicos para determinada finalidade, sem querer aparecer como responsável por isso. Muitas delas legítimas e republicanas. Razões políticas, pessoais, conjunturais e muitas outras. Razões que não importam em qualquer ato ilícito, nem mesmo ilegítimo ou não meritório.
Mas há também as razões não republicanas. Corrupção, por exemplo. Destinar recursos que não serão utilizados para a finalidade determinada, mas sim para que retornem, no todo ou em parte, ao próprio parlamentar, seu grupo de interesse, seus financiadores, e tantos outros. Evidente o interesse, nesse caso, em não deixar sua “assinatura” nesse processo, dificultando que reconheçam sua participação e envolvimento no desvio de recursos.
Daí porque faz sentido opor-se a esse detalhe do processo orçamentário que permite mitigar a transparência em parte dos recursos cuja alocação é definida na lei orçamentária na fase de deliberação por parte do Congresso Nacional.
A corrupção muitas vezes é bastante sofisticada, e há regras que em muito colaboram para dificultar que seja descoberta. “Misturar o joio com o trigo” é uma das mais antigas, conhecidas e eficientes. O “orçamento secreto” colabora para isso. É importante que seja revisto e aperfeiçoado o processo de emendas parlamentares, para que não seja possível utilizá-lo com a finalidade de acobertar atos de corrupção.
O processo orçamentário é extremamente relevante, e deve ser transparente, como determina a Constituição e todo o ordenamento jurídico. “A luz do sol é o melhor desinfetante”, diz a famosa frase de Louis Brandeis (“What publicity can do”, Harper´s Weekly Magazine, 1914), e ela precisa estar plenamente presente no processo orçamentário para ajudar a debelar o mal da corrupção.
*José Mauricio Conti é mestre, doutor e livre-docente pela USP, instituição onde é professor de Direito Financeiro. Autor, entre outros, do livro A luta pelo Direito Financeiro (Ed. Blucher, 2022)
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
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