A Reforma Administrativa apresentada pelo governo federal (PEC 32/20) põe novamente em discussão o instituto da estabilidade dos servidores públicos em nosso país.
Referida estabilidade, como um dos mais importantes atributos inerentes aos que exercem funções públicas, foi prevista no Brasil, pela primeira vez, há mais de 100 anos, em 1915, através da Lei 2.942, que a estabelecia após o cômputo de 10 anos de carreira.
Num país de forte presença da cultura patrimonialista, em que muitos ainda buscam se utilizar da administração pública para a satisfação de interesses particulares e não coletivos, a estabilidade foi pensada, justamente, como uma garantia de independência na atuação dos servidores contra as constantes ingerências e pressões a que estão submetidos.
Não foi raro, observar, por exemplo, especialmente nos entes políticos subnacionais, agentes políticos eleitos buscarem, logo após a posse, alterar significativamente o quadro de servidores estabelecido, de modo a preencher os cargos com pessoas próximas ou simpatizantes da nova “ordem política”.
Tal fato revela uma segunda justificativa importante para o instituto da estabilidade, qual seja, a garantia de manutenção de um quadro permanente de servidores, para além dos governantes transitórios, de forma a permitir a continuação dos serviços públicos desenvolvidos.
Mesmo nos Estados Unidos da América, país de forte tradição republicana, o revezamento de poder entre os partidos resultou, durante largo período, na alteração substancial do quadro de servidores, de modo a propiciar o seu preenchimento por pessoas partidárias, vinculadas aos novos agentes eleitos ou às suas ideias.
Por isso, a estabilidade foi incorporada à legislação da ampla maioria dos países civilizados como uma proteção ao desempenho altivo das funções públicas, sem o temor de que os servidores viessem a perder os cargos ou sofrer represálias em razão de interesses por eles contrariados.
No Brasil, a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a prever o instituto, reduzindo o prazo de sua obtenção para 2 anos de exercício.
Essa garantia foi mantida pelas constituições subsequentes, incluindo a de 1988, até que, em 1998, a Emenda Constitucional nº 19 aumentou o prazo para 3 anos e flexibilizou o instituto ao prever, também, a possibilidade de perda do cargo em razão de avaliação insuficiente de desempenho, de forma a não permitir que a importante proteção da estabilidade viesse a servir de blindagem protetora para maus servidores.
Ultrapassados mais de 20 anos da referida alteração constitucional, o instituto da avaliação de desempenho ainda não foi regulamentado.
E aqui reside a maior incoerência na proposta em tramitação no Congresso Nacional. Segundo apregoam os seus defensores, a motivação para acabar com a estabilidade dos servidores, com exceção dos que exercem carreiras típicas de Estado, seria, justamente, impedir a manutenção nos quadros da administração de agentes acomodados, ineficientes, não mais comprometidos com a necessária dedicação e atenção na prestação de serviços públicos.
O argumento não se sustenta. Afinal, bastaria a regulamentação do procedimento de perda de cargo por má avaliação de desempenho, em mora legislativa há 23 anos, para que a referida preocupação, legítima, restasse acobertada.
Analisando os fatos da histórica política do país, o que se observa é que são fartos os exemplos, inclusive nos tempos atuais, em que servidores concursados e estáveis, recrutados pelo mérito, atuaram e continuam a agir servindo como barreira aos atos de corrupção que se pretendem ver praticados.
Assim, a estabilidade permite a organização de um quadro administrativo profissional e bem mais infenso às iniciativas patrimonialistas dos governantes de ocasião, bem como dos agentes externos, inclusive econômicos, que possuem trato regular com a máquina pública.
Infelizmente, ainda somos o país do uso tradicional do “sabe com quem você está falando?”. A estabilidade não foi e não é capaz de alterar, sozinha, esse cenário.
Mas, certamente, a cultura da corrupção, filha do patrimonialismo, ficaria mais dificil de se propagar e fixar raízes se a regra em nosso país fosse a da presença, em todos os setores da vida pública, de servidores concursados e estáveis desempenhando as suas funções.
A proposta da Reforma Administrativa vai na contramão desses esforços, ao permitir, também, a precarização no preenchimento de boa parte dos cargos públicos, com o acréscimo significativo de hipóteses de contratação temporária e de livre nomeação política.
Em tempo de retrocessos no combate à corrupção e à cultura da impunidade, o fim da estabilidade e a precarização na nomeação de servidores públicos é mais uma pá de cal nos esforços éticos e republicanos que vinham sendo implementados.
*Fábio George Cruz da Nóbrega, procurador regional da República e ex-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção.
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