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Opinião – A inadequação do índice de liquidez geral no setor de saneamento básico

Roberto Lambauer*

 

O índice de liquidez geral (LG) mede a capacidade da empresa de adimplir obrigações no longo prazo. O referido índice considera a proporcionalidade existente entre os bens e direitos da empresa em relação às dívidas totais (Liquidez Geral = (Ativos Circulantes + Ativos Não Circulantes) / (Passivos Circulantes + Passivos Não Circulantes).

 

A Administração Pública adota os índices LG, Solvência Geral (SG) e Liquidez Corrente (LC) iguais ou superiores a um em licitações visando à celebração de contratos para fornecimento de bens e serviços, cuja duração é em regra de cinco anos (art. 106, caput). Ocorre que, em meio ao volume crescente de projetos de saneamento básico país afora, foram observados equívocos de modelagem em uma minoria de editais de concorrência pública nos quais se previu a adoção do LG ≥ 1 para aferição da habilitação econômico-financeira das licitantes para submissão de propostas visando à celebração de contratos de concessão.

 

É vedada a exigência de índices não usualmente adotados para a avaliação de situação econômico-financeira suficiente para o cumprimento das obrigações decorrentes da licitação, conforme previsto no art. 69, §5º da Lei 14.133/2021. O dispositivo impõe que o ente licitante considere as peculiaridades setoriais ao decidir motivadamente pela inserção de índices econômicos no Edital.

 

A previsão do índice LG ≥ 1 não é usual para a avaliação da capacidade econômico-financeira de uma proponente em licitação envolvendo concessão de serviços de saneamento básico.

 

Os operadores de saneamento realizam altos investimentos em infraestrutura (CAPEX) cujo retorno é de longo prazo, os quais, somados às elevadas despesas operacionais (OPEX) e a inerente necessidade de obtenção de financiamento de longo prazo, podem reduzir em alguma medida o nível de liquidez geral (LG) dos referidos operadores, sem, no entanto, afetar a sua capacidade de operação e expansão dos serviços nos níveis exigidos no Edital.

 

Portanto, é evidente que a capacidade econômico-financeira de operadores de saneamento não pode ser avaliada da mesma forma que empresas que atuam em outros setores, por exemplo no fornecimento de bens consumíveis, em relação às quais seria em tese pertinente a escolha de índices padronizados tais quais os previstos no Edital.

 

A corroborar a inadequação do referido índice como critério de qualificação econômico-financeira, é de se notar a sua ausência em recentes editais de concorrência de grande vulto no setor de saneamento.

 

Na Concorrência Internacional nº 1/2021, promovida pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro para a concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de fornecimento de água e esgotamento sanitário em municípios do Estado foram exigidas certidão negativa de falência e recuperação judicial e declaração de disponibilidade de recursos financeiros (próprios ou de terceiros) para cumprimento das obrigações previstas no Contrato de Concessão. O edital previa a apresentação de garantia de proposta cujo valor variava de R$ 41 milhões a R$ 170 milhões a depender do bloco que fosse objeto de proposta. Além disso, exigia-se a apresentação de atestado de captação de recursos financeiros com relação a empreendimentos de infraestrutura em montante proporcional às obrigações financeiras aplicáveis a cada bloco.

 

Para citar um exemplo recente, considere-se o Edital de Concorrência Pública Internacional nº 01/2024, promovido pelo Governo do Estado de Sergipe para a concessão da prestação regionalizada de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário de microrregião contemplando um total de 74 municípios. O referido edital exigia que a licitante possuísse patrimônio líquido de no mínimo R$ 312 milhões (5% do valor estimado da contratação), bem como a apresentação de atestado comprobatório da captação de ao menos R$ 625 milhões (10% do valor estimado da contratação). Não constou do edital publicado pelo Governo do Estado de Sergipe qualquer referência ao índice LG.

 

Tampouco se nota a presença do índice LG em licitações promovidas por municípios isoladamente, como no caso dos editais publicados pelos Municípios de Governador Valadares/MG e Divinópolis.

 

A inadequação do índice de Liquidez Geral (LG) é corroborada por recente estudo publicado por Sérgio Dalescio (auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás) e Lúcio Machado na edição de dezembro de 2023 da Revista da Advocacia Geral da União, intitulado “Habilitação Econômico-Financeira na Concessão de Serviços Públicos: Estudo Empírico com Empresas do Setor de Saneamento Básico”.

 

O referido estudo aponta que “entre as prestadoras que atingiram dois dos três indicadores, 90% delas não atingiram apenas o indicador de liquidez geral (LG) (…) comprovando que a utilização de indicadores padronizados, que não levam em consideração a realidade do setor econômico ao qual as empresas estão inseridas, não refletem a realidade do mesmo, fazendo com que a cobrança de tais indicadores constitua mero cumprimento de formalidade e que a informação contábil seja percebida com baixa qualidade pelos agentes que integram o processo”.

 

Dentre os projetos recentes no setor de saneamento nos quais se previu o índice LG ≥ 1, mencione-se os editais de concorrência publicados pelo Estado do Piauí envolvendo a concessão da prestação regionalizada na microrregião de água e esgoto do Piauí e, isoladamente, pelos Municípios de Concórdia e Palhoça em Santa Catarina.

 

O edital de Palhoça/SC em particular foi objeto de representação (Processo @PAP 24/80065841) perante o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. No âmbito do referido processo, a Coordenadoria de Concessões e Parcerias Público-Privadas apontou em relatório de instrução que nenhuma das principais operadoras de saneamento básico do País atenderia o índice LG ≥ 1 com base em balanços patrimoniais do exercício de 2023. Com base em tais achados de auditoria, a unidade técnica concluiu que a adoção do índice LG ≥ 1 não teria sido justificada.

 

A primeira versão do edital de concorrência publicado pelo Estado do Piauí (Edital de Concorrência nº 01/2024/SEAD) previa a adoção do índice LG ≥ 1 como critério de qualificação econômico-financeira das licitantes. Em resposta a uma série de questionamentos, o edital foi suspenso, tendo sido publicado recentemente (Edital nº 2 da Concorrência Pública nº 01/2024/SEAD). A última versão publicada estabeleceu como exigência a comprovação de índice LG ≥ 0,5 (zero vírgula cinco), o que mais uma vez corrobora a inadequação do índice LG ≥ 1 para o setor de saneamento básico.

 

Espera-se que o posicionamento dos órgãos de controle e do próprio ente licitante pela impossibilidade de adoção do índice LG ≥ 1 em licitações tendo por escopo a concessão de serviços de saneamento básico contribua para o aperfeiçoamento de projetos no setor. As melhores práticas setoriais – refletidas em projetos modelados pelo BNDES – apontam para a comprovação de financiabilidade e para a apresentação de garantias financeiras.

 

*Roberto Lambauer é sócio de Direito Público do escritório KLA Advogados

 

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

 

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