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Opinião | Do cigarro às ‘bets’: o novo ovo da serpente

Sem limites éticos, o céu é o limite para esse mercado criar eventos ‘apostáveis’. O que interessa é faturar

 

04/11/2024 | 03h00

 

Por décadas, nós nos acostumamos a ver nas telas do cinema muitos dos nossos ídolos fumando. As cenas dos filmes contribuíram para a assimilação do consumo do tabaco e da nicotina contida nos cigarros, os fumos dos cachimbos e dos charutos. Para muitas pessoas, por gerações, tudo era inspirado nos ídolos, imitados em detalhes de roupas, trejeitos, maquiagem e no consumo do cigarro, que se massificou, transformando-se em hábito, em verdadeira cultura pop.

 

Uma histórica propaganda publicitária dos cigarros Vila Rica, dos anos 1970, serviu-se da imagem do craque Gérson, tricampeão da Copa de 70, o cérebro da seleção brasileira de futebol, em que ele dizia que preferia aquela marca pela qualidade e pelo preço. E, por isso, convidava os consumidores a fumar. O importante é levar vantagem em tudo, certo? Aliás, essa mensagem ficou famosa também como lei de Gérson – a pregação pela busca da vantagem inerente à corrupção.

 

O mercado do tabaco, anos a fio, exibiu às pessoas o mundo do glamour e do luxo, apresentando símbolos icônicos do sucesso, que se conectavam aos arquétipos brasileiros, como o boiadeiro, naquela famosa propaganda do mundo de Marlboro encenada por Robert Norris. O apelo publicitário surtiu efeito no faturamento das empresas fabricantes de cigarros, que enriqueceram, trazendo junto com isso o ovo da serpente. Essa figura, aliás, foi magnificamente retratada por Ingmar Bergman ao mostrar nas telas do cinema os tempos pré-nazistas dos anos 1920, na Alemanha da República de Weimar, nas palavras marcantes do Dr. Vergerus: “Através das finas membranas, você pode discernir o réptil já perfeito”.

 

Os pulmões das pessoas faliram em massa, multidões faleceram em razão de câncer, de tromboangeíte obliterante e muitas outras doenças. Outros adoeceram, passando a ter vidas restritas. Ao diagnosticar “o ovo da serpente” adotaram-se medidas restritivas ao consumo de cigarros com advertências sobre os malefícios nas embalagens. Depois veio a proibição do fumo em locais fechados (a primeira, nos aviões). A vitória histórica da sociedade nesse embate foi a total proibição da propaganda, materializada pela Lei 12.546, de 2011, 13 anos atrás, portanto. A partir daí diminuiu a venda de cigarros. Mesmo diante do desagrado do setor, tomou-se a decisão certa, ainda que o remédio seja amargo, restringindo-se a difusão publicitária do consumo desses produtos. E o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, em 2022 ratificou o acerto da restrição legal.

 

Nessa linha da redução de danos, o Brasil vem se destacando na implementação da convenção-quadro da ONU de enfrentamento ao consumo do tabaco. Consumimos sete pontos abaixo da média mundial. Mesmo assim, 12,6% da nossa população fuma e mais de 160 mil pessoas morrem por ano por causa do fumo.

 

Temos agora um novo ovo da serpente. As bets, sem regulamentação, faturam hoje R$ 20 bilhões por mês na base do capitalismo literalmente selvagem e arrebatam R$ 3 bilhões por mês do Bolsa Família, que foi criado para acudir quem vive em miséria extrema. As pessoas estão ficando viciadas nesses jogos, endividando-se e transformando residências humildes em cassinos. A questão vai além da dimensão tributária, que foi a única observada pelo governo num primeiro momento, por falta de visão de gestão.

 

Esse guloso segmento contrata a peso de ouro e usa em propagandas figuras idolatradas pela sociedade, como o grande e histórico craque Rivellino, herói da conquista da mesma Copa de 70, o jogador Hernanes, o “profeta”, assim como as atletas Duda e Ana Patrícia, do vôlei de praia, e Bia Souza, do judô, ouro olímpico em Paris 2024, e o narrador Galvão Bueno, com décadas de Globo. Palavras cunhadas com habilidade, como “profetize”, estimulam apostas, colocando o cliente no trono do profeta.

 

Hernanes estimula as apostas na condição de “profeta” chamando as pessoas a “profetizar” junto com ele. Tudo é habilidosamente envolvente, sedutor e dá certo. Ocorre que estamos falando de um mercado que deveria ter regras éticas, mas não tem. Cogitaram abrir apostas até em relação aos candidatos nas eleições municipais, em óbvia afronta às leis eleitorais, que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) corretamente vedou. Sem limites éticos, o céu é o limite para esse mercado criar eventos apostáveis. O que interessa é faturar.

 

Pessoas viciadas estão arruinando suas famílias, não pagando dívidas com agiotas, chegando a ser ameaçadas de morte. “Beba com responsabilidade”, “cigarro mata” ou “jogue com responsabilidade” são óbvios faz de conta. Sim, é melhor fazer advertência do que não fazer, mas não tenhamos ilusões hipócritas de que isso resolva algo.

 

Além das consequências à saúde pública e às famílias, os setores produtivos estão alertando para os danos graves e irreparáveis à economia. Problemas extremos exigem medidas extremas e imediatas. Além da regulação, a ação necessária e certeira é a proibição total, por lei, da propaganda das bets, como se fez em relação aos cigarros e deu certo. A continuidade da permissão à livre comunicação em massa por meio publicitário praticamente equivalerá à difusão de uma pandemia letal sem adoção de vacina pelo poder público.

 

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’

 

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