Fernando José Da Costa* 08 FEVEREIRO 2024 | 7min de leitura
As criptomoedas, representantes digitais de valor, emergiram há mais de uma década como uma inovação disruptiva, apresentando características únicas que desafiam os paradigmas tradicionais do mercado financeiro e atualmente, nem ao menos é possível estimar quantas variações de criptoativos existem no mercado, criando-se o caos na ausência de uma regulamentação eficaz.
A história da primeira criptomoeda, o Bitcoin, remonta a 2008, quando um autor (ou grupo de autores), sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, propôs um sistema descentralizado de transações peer-to-peer. O motivo por trás desse conceito era criar uma forma de pagamento digital que fosse segura, eficiente e não dependesse de instituições financeiras tradicionais.
Assim, a descentralização é um dos pilares fundamentais das criptomoedas, que operam em uma rede de nós distribuídos, eliminando a necessidade de uma autoridade central, como um banco, para intermediar transações. Nessas operações, a segurança é garantida por meio de criptografia robusta, enquanto a transparência é assegurada pelo blockchain.
Nesse ponto, a mesma descentralização que torna as criptomoedas atraentes pela eficiência, também pode ser explorada por criminosos, criando uma preocupação global à medida que os atores mal-intencionados buscam explorar as características pseudoanônimas e globalizadas das transações com criptoativos.
Além disso, ao passo em que as criptomoedas se tornaram um atrativo financeiro a título de investimento, também surgiram as exchanges, que nada mais são do que plataformas que facilitam a compra, venda e troca de diferentes criptoativos. Essas plataformas funcionam como intermediárias, conectando compradores e vendedores interessados em transações com ativos digitais e oferecem uma vasta gama de criptomoedas, permitindo que os usuários negociem de acordo com suas preferências e estratégias de investimento.
Em que pese as exchanges desempenharem um papel fundamental nesse ecossistema digital, fornecendo liquidez ao mercado e servindo como ponto de entrada para muitos investidores interessados em explorar esse universo, elas também podem ser o cenário de muitos delitos, seja facilitando a lavagem de capitais, seja operando uma pirâmide financeira, assunto este que, inclusive, foi objeto de uma CPI neste ano. E é justamente por isso que a regulação se tornou ainda mais necessária, notadamente pela ampliação exponencial da possibilidade de negociação nesse setor, que até então era restrita àqueles que detinham conhecimento sobre as tecnologias avançadas que integram as criptomoedas.
Dessa forma, atendendo a esta urgente necessidade, foi promulgado no Brasil, em dezembro de 2022, o Marco Legal das Criptomoedas (Lei nº 14.478, de 2022), fruto de um projeto de lei de 2015, que ganhou vigência somente a partir de junho deste ano, muito embora nosso país já tenha pelo menos 4 milhões de investidores nesse setor.
O Marco Legal, além de definir o que são as criptomoedas – que na realidade não são moedas e sim ativos digitais -, estabelece diretrizes para provedores de serviços de criptoativos, incluindo as exchanges, e prevê uma punição penal mais rigorosa para aqueles que praticarem crimes por meio desses ativos digitais.
A partir disso, atribuiu-se ao Banco Central o papel de principal regulador - com exceção daqueles ativos considerados valores mobiliários, que são regulados pela CVM - visando garantir a segurança dos investidores e prevenir atividades ilícitas, o que nos traz um ponto muito positivo no que diz respeito à flexibilidade normativa que as criptomoedas exigem. Isso porque circulares ou portarias de órgãos reguladores dispõem de uma celeridade de modificação muito maior do que uma lei federal e conseguem acompanhar melhor a rápida evolução tecnológica desse setor.
No entanto, quase seis meses se passaram desde a vigência da lei e não há, até o momento, nenhuma regulação emitida pelo Banco Central, que ainda depende de consulta pública para estabelecer as regras, previstas para serem publicadas em 2024. O intuito do órgão é que a regulamentação brasileira sirva de exemplo para outros países e, considerando a transnacionalidade das operações em criptomoedas, que muitas vezes são realizadas por meio de empresas offshore, o objetivo central é que o Brasil se torne um local seguro para esse mercado e, consequentemente, atraia mais investidores.
Em uma live realizada pelo Banco Central recentemente, foram anunciadas algumas das medidas a serem adotadas, que incluem, dentre diversos outros aspectos, um conjunto regulatório específico para operações internacionais, que estarão em consonância com as atuais regras do mercado de câmbio nacional, assim como normas de combate à lavagem de dinheiro, que exigirão o monitoramento de todas as transações em criptomoedas, que deverão ser integralmente reportadas às autoridades. Além disso, as operações efetuadas em protocolo DeFi, que são aquelas que independem de um intermediário, também estarão sujeitas à regulamentação, tal qual as exchanges.
Especificamente no âmbito do direito penal, o Marco Legal das Criptomoedas introduziu crimes específicos relacionados a criptoativos, tanto no Código Penal, quanto em legislações especiais. Dentre eles, o destaque está na inclusão de um aumento de pena de um a dois terços para aqueles que praticam o crime de lavagem de ativos utilizando criptoativos.
O crime de estelionato também recebeu atenção especial e agora dispõe de um tipo penal próprio, cuja pena é significativamente maior do que o estelionato comum. Para aqueles que organizarem, gerirem, ofertarem ou distribuírem carteiras ou intermediarem operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, a pena de reclusão é de quatro a oito anos, já no estelionato comum, por outro lado, a pena é de um a cinco anos. Além disso, a regulamentação brasileira também equipara as exchanges às instituições financeiras definidas na Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional.
Tudo isso reflete uma preocupação sobre o aumento da cibercriminalidade e a manipulação de investidores, demonstrando que estamos caminhando para um mercado mais transparente e confiável.
No mais, ao contrário do que alguns temem, a inclusão das criptomoedas na esfera regulatória não mitiga o princípio descentralizado das criptomoedas, mas canaliza esse potencial para um ambiente mais seguro e controlado. Dessa maneira, a descentralização se mantém no âmbito das transações, enquanto a regulamentação visa disciplinar o espaço dos intermediários, mitigando os riscos associados a fraudes e esquemas ilegais.
Não obstante, no que tange ao caráter preventivo, a própria tecnologia blockchain, base estrutural das criptomoedas, desempenha um papel fundamental na prevenção de crimes, uma vez que essa estrutura descentralizada e imutável proporciona uma trilha transparente de todas as transações realizadas.
Assim, a capacidade de rastrear cada transação até sua origem e validar sua autenticidade confere ao blockchain uma poderosa ferramenta na construção de um ambiente financeiro mais seguro e transparente. Ainda, também devemos utilizar diversas outras tecnologias no combate à criminalidade, como as inteligências artificiais, que podem rastrear e identificar padrões suspeitos.
Além disso, ressalto que é de fundamental importância que a regulamentação das exchanges concentre sua atenção nas operações off-ramping, que se referem à conversão de ativos virtuais em dinheiro. Nesse contexto, deve ser vedada qualquer forma de transação que envolva anonimato, de modo a garantir maior rastreabilidade e transparência nas movimentações financeiras e combater a prática criminosa.
Ao estabelecer diretrizes claras para essas operações, a regulamentação desempenha um papel essencial na prevenção de atividades ilícitas, promovendo a integridade do mercado de criptomoedas e fortalecendo a confiança dos investidores. A busca por um equilíbrio entre a liberdade inerente às criptomoedas e a necessidade de proteção contra crimes financeiros é uma jornada em constante desenvolvimento e o nosso desafio agora é garantir que a regulamentação evolua para enfrentar as complexidades dinâmicas do mercado de criptoativos.
*Fernando José da Costa é advogado criminalista, coordenador do curso de Direito da FAAP, presidente do Lide Justiça, conselheiro do Instituto Não Aceito Corrupção - INAC, conselheiro do Instituto Nacional de Estudos Sobre Criptoativos – INECRIPTO, embaixador do Instituto PRÓVITIMA, membro da Sociedade Internacional de Defesa Social para uma Política Criminal Humanista – SIDS; ex-secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, ex-presidente da Fundação Casa; ex-superintendente do Instituto de Medicina Social e Criminologia do Estado de São Paulo – IMESC, autor de treze livros e inúmeros artigos jurídicos
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
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