ROBERTO LIVIANU 17 OUTUBRO 2023 | 3min de leitura
Depois de longo e exaustivo debate no seio da sociedade civil, em 2011, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a possibilidade jurídica da união legal entre duas pessoas do mesmo sexo. Agora, 12 anos depois, o número de casamentos homoafetivos quadruplicou, de acordo com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Isso significa, seguramente, que a Suprema Corte teve naquela ocasião elevado grau de coragem e sensibilidade social ao buscar uma interpretação da ordem jurídica condizente com a dinâmica social, que servisse da melhor maneira à sociedade e à proteção da dignidade humana, que respeitasse o direito à igualdade e até mesmo o direito à felicidade.
Na 3ª feira (10.out.2023), entretanto, de forma absolutamente incompreensível à luz da proteção desses direitos e interesses, avançou na Câmara dos Deputados um projeto de lei que proíbe, por mais incrível que isto possa parecer, a possibilidade de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A proposição foi aprovada na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família por 12 votos a 5.
O projeto, relatado pelo deputado Pastor Eurico (PL-PE), vai agora ser discutido na Comissão de Direitos Humanos e de Constituição e Justiça. O texto altera o Código Civil acrescentando, dentre as categorias que “não podem se casar”, as “pessoas do mesmo sexo”.
Durante a leitura de seu relatório, o congressista fez uma série de referências religiosas, alegando que a união entre pessoas do mesmo sexo é considerada impedimento para admissão no “reino dos céus” e estabelecendo ligações entre relação homoafetiva e “aberrações” ou a práticas masoquistas.
Desde 1891, vale lembrar, o Estado brasileiro é laico, tendo-se rompido a ligação que até então existia com a Igreja. Entretanto, culturalmente ainda se vê presente esse laço. Há celebração de feriado nacional de santa padroeira e crucifixos, que são objetos inerentes à prática do catolicismo, estão afixados em prédios públicos, especialmente palácios da Justiça, não obstante os destinatários da Justiça possam ser até agnósticos ou ateus.
Na realidade brasileira, há centenas de congressistas que chegaram ao mundo político, adquirindo notoriedade como ministros religiosos –especialmente como pastores ou padres, o que não é vedado pelo ordenamento eleitoral.
Ao longo dos séculos, especialmente a partir do Iluminismo, o Direito experimentou grande evolução, especialmente na esfera penal e processual. Aboliram-se as penas degradantes ou infamantes e o bem jurídico que se passou a querer proteger é o interesse social e não mais o interesse canônico, como foi no passado, quando se confundiam os conceitos de crime e pecado.
Parecem-me totalmente descabidas as referências feitas pelo relator no sentido de etiquetar negativamente a união civil homoafetiva, trazendo à memória os tempos do direito canônico. Período em que os pecados levavam os transgressores à punição até com a própria vida, o que não se coaduna com a evolução que experimentamos ao longo dos séculos e com os direitos consolidados no Congresso e no STF. Não estamos mais vivendo a época das fogueiras medievais para os infiéis hereges.
Assegurar o direito civil à união homoafetiva é tendência mundial que atende ao próprio interesse da sociedade, diante do aumento dos números de uniões. Leis, é óbvio, devem ser elaboradas sempre para trazer benefícios e soluções, para resolver os problemas e acomodar os interesses da sociedade. Se esse é o anseio social, se o número de uniões se multiplicou ao longo dos últimos anos, se o tema já se consolidou no setor jurisprudencial e igualmente doutrinário, qual o sentido dessa proposição que vem contrariar a Constituição e esta realidade social sedimentada?
Por mais legitimado que esteja no exercício do Poder Legislativo, é imprescindível que o mandato seja exercido dentro dos ditames do compromisso do irrestrito compromisso de respeito aos interesses maiores da comunidade, da dignidade humana, da ordem jurídica e do regime democrático, havendo notícia inclusive que muitas pessoas que queriam criticar o projeto foram expulsas do recinto do debate na Câmara.
Com todo respeito ao nobre congressista, penso que a Comissão de Constituição e Justiça irá exercer seu papel na plenitude e terá a oportunidade de indicar a contundente inconstitucionalidade da proposição em foco. O texto de maneira clara afronta o direito à igualdade de todos perante a lei e o direto à felicidade, frente a uma realidade inexoravelmente consolidada há muitos anos em nosso país.
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