Quando criança, ficava feliz em ouvir que o Brasil era o país do futuro, que nossas riquezas minerais, extensão territorial, solo fértil, clima bom, tudo isso nos garantiria um lugar privilegiado no cenário das nações. A gente podia sentir o otimismo no ar. O futuro sonhado estava logo ali. Era só esperar ele chegar de forma inexorável.
Aquele futuro brilhante nunca chegou. É bem verdade que melhoramos em alguns aspectos, mas ficamos muito aquém de nosso potencial. Temos menos analfabetos, mas quarenta anos depois, ainda não conseguimos eliminar a miséria entre nós, mais de metade de nossas residências não têm esgoto tratado, a desigualdade social é gritante e a corrupção da administração pública se apresenta resistente como nunca.
Chegamos a 2021 com um IDH mediano (84º entre 189 países) e um índice de percepção da corrupção vergonhoso (38 pontos), abaixo da média mundial de 43 pontos, o que nos coloca na 94ª posição entre as nações, atrás ainda das médias dos países do BRICS (39), da América Latina e Caribe (41) e da OCDE (64) e G20 (54).
Como assinala a Transparência Brasil, o índice de percepção da corrupção é uma referência de extrema importância para a tomada de decisão, avaliação de riscos e planejamento de ações, tanto no setor público como no privado. Entre investir em um país considerado com de alto nível de integridade e investir em outro com alto nível de corrupção, é evidente que o investidor prefere o primeiro, pois oferece menos riscos.
É preciso, pois, considerar o nível de integridade como um ativo do país. Deve-se buscar a constante elevação desse nível com diagnósticos precisos, planejamento, reformas legais e estruturais para que o país possa se desenvolver de acordo com seu potencial. A elevação do nível de percepção da integridade do país deveria, portanto, fazer parte de sua agenda, porque, para muito além da questão moral envolvida, integridade propicia desenvolvimento, enquanto corrupção significa atraso econômico, social e cultural.
Há quem acredite que a corrupção é um problema marginal, de menor importância e que nosso atraso não decorre da corrupção, mas das más escolhas econômicas, do desperdício dos recursos públicos, do gasto mal feito, do baixo nível de investimentos, esquecendo que esses fenômenos andam de mãos dadas com a corrupção.
Pode-se perceber quão nociva é a corrupção em vários aspectos práticos da vida, que vão muito além da questão moral. Ela afasta as melhores pessoas das posições de poder, recruta os mais aptos a desviar recursos em vez dos mais preparados para bem geri-los, vicia as escolhas econômicas, que são tomadas para favorecer os grupos econômicos que conseguem capturar o Estado, favorece a concorrência desleal etc.
Assim, políticas públicas, isenções fiscais, protecionismo, o grau de intervenção do Estado na economia, decisões regulatórias, ações de fiscalização, tudo passa a ser modulado, quando não integralmente determinado, pela corrupção dos processos decisórios.
A Lava Jato revelou isso com profundidade inédita. Escancarou os mecanismos de corrupção na administração pública e no processo político e colocou no banco dos réus os mais poderosos empresários e líderes políticos do país.
Pela primeira vez, desde que cheguei à idade adulta, tive a sensação de que a impunidade debochada dos corruptos poderia estar chegando ao fim. Parecia que o futuro radiante de um país íntegro finalmente chegaria com o país livre de tantos parasitas que sugam sua energia.
Com o instrumento das delações premiadas, a investigação criminal ganhou uma velocidade e profundidade jamais vistas. A descoberta da existência de um departamento inteiro de uma das maiores empresas do país apenas para administrar o pagamento de propinas, o extenso rol dos beneficiários desses pagamentos e até a existência de um banco comprado por essa empresa no exterior para fazer pagamentos de propinas em dólares dão a dimensão do quão longe avançou a operação.
Coincidentemente, após a delação dos donos e executivos dessa empresa e da divulgação da imensa lista de figuras públicas por ela corrompidas, a operação angariou inimigos influentes e poderosos que até então manifestavam apoio à iniciativa. O amplo espectro ideológico de delatados foi a senha para que se unissem no firme propósito de derrotá-la.
Desde então, o combate à corrupção ainda teve algumas vitórias, mas passou a contabilizar seguidos reveses, tanto no campo da legislação, como no judicial, passando ainda por mudanças no Poder Executivo e pela nomeação de um Procurador-Geral da República abertamente contrário à operação.
No Congresso Nacional, não só não foram aprovadas nenhuma das 10 Medidas Contra a Corrupção, discutidas na legislatura passada, e nenhuma das 70 Novas Medidas Contra a Corrupção, apresentadas pela Transparência Brasil para a legislatura iniciada em 2019, como, ao contrário do claro anseio da população, aprovaram-se iniciativas que dificultam o combate à corrupção e, portanto, promovem a impunidade, como a Lei de Abuso de Autoridade e a limitação ao escopo das delações premiadas, que já não podem revelar outros esquemas de corrupção além daquele investigado.
No Supremo Tribunal Federal, há ministros que ostensivamente se manifestam contra a operação Lava Jato, algumas vezes de forma ofensiva aos que dela participam ou participaram, revelando um sentimento de rejeição que certamente se fará presente por ocasião dos julgamentos de que terão de participar, como o que tratará da imparcialidade do ex-juiz Sérgio Moro em processos que conduziu em Curitiba. Como ministros que manifestam prejulgamento da causa podem ter o distanciamento e a isenção necessários para julgar a isenção de outro magistrado?
Não sendo possível refutar as provas cabais dos atos de corrupção praticados, a estratégia utilizada pelos inimigos da operação é a da alegação de nulidades processuais. Há todo tipo de tese e não falta criatividade. Em certo caso, a condenação foi anulada porque não se observou uma regra que sequer existia – a de que, em alegações finais, delatados devem falar no processo depois dos delatores – porém, nenhuma decisão foi tão deletéria para o combate à corrupção como a que declarou ser inconstitucional o início da execução da pena após a condenação do réu em segunda instância. Com essa impossibilidade, os réus que têm dinheiro para recorrer indefinidamente aos tribunais superiores podem assistir de camarote à proclamação da prescrição de seus crimes. A impunidade é uma certeza e o processo um mero aborrecimento.
Desde o início da vigência da Carta de 1988, essa prisão era admitida. Em 2009, o STF decidiu por sua impossibilidade. No início de 2016, voltou a admiti-la para, em 2019, novamente rejeitá-la. Não há paralelo nas democracias ocidentais de tamanho zigue-zague jurisprudencial em tema constitucional tão relevante, sem nenhuma mudança de texto constitucional e com a presença incompreensível de votos oscilantes, isto é, com ministros que mudaram de voto em tão pouco tempo.
No campo do Poder Executivo, além das seguidas mudanças no COAF em 2019, vimos também as injustificadas mudanças no comando da Polícia Federal e a cereja do bolo: a nomeação para o cargo de Procurador-Geral de República de um membro do Ministério Público que podia exercer a advocacia, nutria antipatia pela operação e determinou o fim do bem sucedido modelo de trabalho denominado força-tarefa. Em evento na OAB e em audiência no Senado referiu o atual PGR que pretendia restaurar o “bom e velho combate à corrupção”.
Enfim, a Lava Jato tem sido tão atacada que parece que os agentes públicos que dela participaram é que eram bandidos e que os corruptos são pobres vítimas. Apontam-se os supostos excessos da Lava Jato com paixão e se esquecem dos bilhões desviados da Petrobras e outras empresas estatais.
Em vez de avançarmos na agenda da integridade, temos colecionado nos últimos anos uma sequência de reveses comparável ao 7 x 1 que levamos da seleção alemã em 2014. Isso tem destruído a confiança no futuro do país, a crença na capacidade das instituições de assegurar ao cidadão aquilo que é básico numa democracia, o império da lei e a igualdade de todos perante ela.
Isso tem custo e ele é altíssimo. Custa vidas – corrupção mata – e custa o futuro do país, custa todos os investimentos que afugentamos com esse ambiente de elevada percepção de corrupção, custa todos os cientistas, engenheiros, médicos, professores, entre outros, que deixamos de formar por falta de acesso à educação, custa todos os empreendedores brasileiros que preferem migrar para outros países por não acreditarem no nosso.
Recém ingresso na universidade, vivi a esperança e o otimismo que a redemocratização trazia para o país. Era o alvorecer da Nova República. Hoje, vejo meus filhos e tantos jovens com o coração cheio de dúvidas e questionamentos sobre o futuro do país, sobre se a sociedade brasileira será ou não capaz de encontrar a saída do labirinto da corrupção em que está presa.
Será que o país do futuro terá futuro? Ou ficará atolado para sempre no lamaçal da corrupção? Rememorando um depoimento de Vinicius de Moraes, digo, como ele, que as ilusões eu perdi quase todas, mas os sonhos não.
*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União.
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