O mundo contemporâneo, e o Brasil de forma especial, experimentam há alguns anos um binarismo cego que tem transformado nossas visões sobre política, economia, cultura e combate à corrupção em um verdadeiro embate futebolístico de final de campeonato.
Vale praticamente tudo para sair vitorioso e derrotar o “adversário”. Tolera-se um gol irregular, um impedimento mal anotado, uma cotovelada não captada pelos árbitros ou mesmo uma proximidade indevida do árbitro com uma das equipes. Claro, tudo isso, desde que seja a “nosso” favor e garanta a “vitória”.
Em um estádio de futebol, se o árbitro assinala um lance em benefício do adversário, ainda que estejamos a centenas de metros de distância e com a visão encoberta, haverá uma sonora revolta da torcida e um acachapante xingamento ao apitador. Ora, não nos venham com a ciência, ou melhor dizendo, o VAR, para comprovar uma determinada situação. Isso não nos importa. Afinal, não se está ali para saber o que aconteceu de verdade, para se fazer justiça, se está ali apenas e tão somente para vencer a partida e sagrar-se campeão. Isso sim é o que importa, pois fornecerá ao vitorioso o direito de se arvorar como superior ao vencido.
Recordo-me de um episódio real em um clássico no qual um jogador seria expulso após a prática de uma infração. Porém, antes que o cartão vermelho fosse sacado do bolso do árbitro, o adversário comunicou ao apitador a inexistência de falta, o que impediu a expulsão. Pela honestidade, acabou defenestrado pela própria torcida e foi levantar taças em outras paragens. Ora, nem pense a “minha” equipe em admitir um erro. Às favas com a justiça, importa vencer.
E por aí vamos derivando esse comportamento para a política, economia, cultura e, lamentavelmente, o combate à pandemia e à corrupção. Se a agremiação contrária afirma que o afastamento social, uso de máscaras e vacinação contribuem para o combate da pandemia naturalmente terei que ser contra, pouco importando o que diz a ciência e o que demonstram os cadáveres que vão se empilhando às centenas de milhares. Até porque não é isso o que diz a bolha da minha “torcida organizada” de rede social ou grupo de mensagens. Às favas com a razão, importa vencer.
E como esse comportamento social desagua na discussão sobre o combate à corrupção? A nosso ver, em três esferas.
Primeiro interdita o diálogo. Nesse clima de ódio gera-se a morte da discussão propositiva, a busca pela “vitória”, impede que se pense em “como” melhorar o sistema preventivo e repressivo de combate à corrupção, limitando-se a espetacularizar os julgamentos, ou seja, as “finais de campeonato”. Ninguém quer saber de pré-temporada e treinamentos.
Em seguida, perde-se a noção de que todos somos do mesmo “time”. Todos nós perdemos (e muito) com a corrupção. Não se duvida que o combate à corrupção é um objetivo comum da sociedade. Ainda que muitas vezes não exista um alinhamento entre a ética privada individual e o desejo de integridade para a vida pública, nos parece fora de dúvida haver consenso de que a corrupção deve ser combatida e que é prejudicial ao desenvolvimento de qualquer agrupamento social. Ainda não se tem notícia de grupos que defendam explicitamente a corrupção, mesmo por aqueles que a praticam…
Mais importante do que combater a corrupção parece ser mostrar que o grupo que sustenta ideias contrárias à sua é mais corrupto. Assemelha-se àquela situação em que um torcedor é questionado em relação a uma penalidade máxima marcada a favor de sua equipe de forma claramente equivocada. Em vez de analisar o lance ele subitamente se vira para o adversário e retumbante afirma: “e o seu time que teve um gol impedido anotado outro dia?”. Importa vencer, não é mesmo?
E por fim, sem perceber, na ânsia de defender nossas “bandeiras”, relegamos o debate ao campo raso das pelejas futebolísticas de várzea em que a anotação de irregularidades por vezes guarda relação com a pujança da torcida e o risco à integridade física de equipes, torcida e árbitros. Ora, às favas com o devido processo legal, o que importa é que seja condenado quem eu não gosto e seja absolvido quem eu defendo. Isso nos autorizará a ignorar se um juiz é imparcial ou mesmo evidências materiais claras de irregularidade praticadas pelo “meu time”, como a restituição de valores e depósitos vultosos, aqui e além-mar, confessadamente fruto de corrupção pelos próprios acusados. Ignoraremos esses fatos solenemente. Qual o problema com um gol de mão, não é mesmo? Não importa a razão, a lei, importa vencer.
Em vez de a sociedade lutar junta contra a corrupção, prefere se manter no pueril mundo binário do “nós” contra “eles”, do “Brasil” (aqui indevidamente apropriado) contra os demais. Passam a ser admitidas ilegalidades de lado a lado e generalizações para que “seu grupo” possa ser aclamado vencedor.
E a corrupção avança com porteiras escancaradas…
Quem defende o Estado de Direito jamais pode compactuar com a corrupção, mas tampouco pode admitir que ela seja combatida à margem da lei. Todos nós perdemos com a corrupção independentemente da cor do partido e de quem se encontra no poder.
Será que não aprenderemos nada? Será que toda essa bile irascível não tem mesmo nos ensinado nada? Será que não conseguiremos jogar fora a água suja, sem eliminar junto o bebê que nela foi banhado. Será que não seremos capazes de separar o joio do trigo, afastar as irregularidades, mas reconhecer os recentes e importantíssimos pontos positivos no combate à corrupção?
É hora de sair do estádio e caminhar para a ágora pública da discussão racional. Enquanto não importar a razão, a lei, perderemos todos, ninguém vencerá, exceto, é claro, a corrupção, que levará o caneco para casa, novamente…
*Glauco Costa Leite é juiz de Direto do Tribunal de Justiça de São Paulo, Doutor pela USP e pela Universidade de Salamanca, autor do livro Corrupção Política: Mecanismos de Combate e Fatores Estruturantes no Sistema Jurídico Brasileiro.
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