Victor Missiato*
24/05/2023
No filme Boleiros, era uma vez o futebol, dirigido pelo excelente Ugo Giorgetti, uma das cenas mais famosas retrata a história de um árbitro de futebol que foi forçado a repetir o pênalti mais de três vezes e ordenar a troca do batedor, para que não sofresse as consequências violentas dos donos do clube, que assistiam ao jogo com a certeza de que o resultado favorecia seus interesses. O pênalti deveria ser convertido de um jeito ou de outro. '
Embora esse conto tenha recebido alguns pontos para uma obra de ficção, sabe-se que a imagem do "juiz ladrão" no futebol brasileiro não é apenas uma mera homenagem da torcida insatisfeita com a arbitragem antes mesmo do início da partida. Um dos casos mais emblemáticos ocorreu no ano de 2005, quando alguns árbitros foram acusados e condenados por manipular resultados de jogos nos principais campeonatos nacionais. O esquema funcionou da seguinte maneira: os árbitros deveriam manipular alguns resultados através de algumas decisões na partida, que favoreceriam um grupo de apostadores. Em troca, os juízes receberiam uma parte dessa quantia, estimada em R$ 10 mil reais por jogo fraudado. O principal nome envolvido nesse esquema de corrupção foi o árbitro Edilson Pereira de Carvalho, que na época era árbitro-FIFA. O estrago desse esquema foi tamanho, que acabou por comprometer o desfecho do campeonato, alterando, inclusive, o campeão.
Apesar de ter ocorrido a confissão dos envolvidos, o processo contra os juízes foi suspenso, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que não houve crime. As fraudes no mundo esportivo só foram tipificadas em 2010, após a inclusão de um artigo no Estatuto do Torcedor. De acordo com o artigo 41E, "Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado", acaba por gerar uma pena de "reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa". De lá pra cá, o futebol passou por uma verdadeira revolução em seu processo de modernização, bem como novas atividades ilícitas relacionadas ao mundo do site de apostas.
Em 2018, o governo federal sancionou a Lei 13.756/18, que legaliza as apostas esportivas no Brasil, apesar de não haver uma regulação em contrapartida. Desse modo, todos os sites de apostas que operam no território brasileiro possuem a maioria de suas sedes em paraísos fiscais, como Curaçao e Malta. Para se ter uma ideia da influência do site de apostas nas receitas do futebol brasileiro, dos 40 clubes que estão nas séries A e B do campeonato nacional, 39 possuem parcerias com esses domínios. As parcerias ocorrem de diversas maneiras: patrocínios nas camisas de futebol, ajuda com o pagamento de salários de grandes estrelas, entre outros espaços publicitários. Segundo o portal BNL Data, os sites de apostam estão movimentando cerca de R$12 bilhões anuais. A título de comparação, o Campeonato Brasileiro distribui ao campeão uma quantia de R$ 45 milhões.
Essa realidade já se encontra presente em outras ligas importantes do mundo, como Espanha e Inglaterra. O problema é que o Brasil, por abrigar uma quantidade gigantesca de jogos e divisões em todos estados da Federação, e pagar salários mínimos a quase 80% de seus atletas, está totalmente suscetível às diversas possibilidades de corrupção na alteração de resultados ou estatísticas de jogos. Em fevereiro de 2023, o Ministério Público de Goiás apresentou uma investigação que busca apurar supostas fraudes avaliadas em cerca de R$ 600 mil. Um dos suspeitos envolvidos no caso é o jogador Romário, ex-volante do Vila Nova (GO), que admitiu ter recebido dinheiro em troca de adulterar seu rendimento em campo para favorecer os apostadores. O detalhamento das possibilidades de apostas favorece muito o esquema, pois escanteios, faltas cometidas, cartões sofridos, pênaltis feitos, tudo isso gera valores dentro do site de apostas. Portanto, pode ser difícil descobrir todos os casos de corrupção. Quanto mais inferior a divisão e a veiculação do jogo nas mídias, mais fácil a possibilidade de adulterar placares.
Diante de tamanho desafio, faz-se urgente promulgar uma legislação que regularize o site de apostas como contribuinte fiscal e agente prestador de serviços com parte da sede em território brasileiro, para que as investigações possam traçar as possíveis relações criminosas entre os CPF e os CNPJ´s. Ademais, como o futebol é um reflexo da sociedade brasileira, as punições devem estar baseadas também na exclusão dos atletas envolvidos. O fato de a remuneração estar longe do ideal frente ao poder de arrecadação não significa que a realidade deva ser compensada com atos de corrupção. O espantoso é acompanhar a lentidão do debate na política brasileira e na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que parecem estar em sintonia com esses problemas, tendo em vista os inúmeros casos de corrupção que envolve parte da classe política e parte dos dirigentes de futebol.
*Victor Missiato, doutor em História (UNESP/Franca), professor e pesquisador do Instituto Presbiteriano Mackenzie, campus Tamboré
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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