Por Caio César Vioto de Andrade*
11/01/2023 | 05h00
Transições de governo são períodos oportunos para se traçar novas agendas e "arrumar a casa". No entanto, já perto do final do ano, o que estamos vendo na transição do governo Bolsonaro para o governo Lula é um conjunto de sinais contraditórios. Desde a eleição, Lula tem dito que a prioridade do novo governo será a área social, mesmo que, para isso, tenha que abrir mão da responsabilidade fiscal. O primeiro alvo do governo foi o chamado "Teto de Gastos", instituído pelo governo Temer, que deveria ser substituído pela proposta da "PEC da Transição". No entanto, ainda não ficou clara qual será a nova regra fiscal que servirá de âncora para os aumentos de despesas.
A existência de uma regra fiscal não se trata de um mero "capricho" tecnocrático de economistas ortodoxos, nem de uma "imposição do mercado", como o novo governo, muitas vezes, tem dado a entender. Quando instituído pela EC nº 95/2016, o Teto pretendia, primordialmente, estancar o crescente endividamento do governo e os sucessivos déficits fiscais. Mais do que isso, no entanto, a nova regra deveria forçar o Executivo Federal e o Congresso Nacional a estabelecerem prioridades e a tomarem iniciativas de reforma em diversas áreas, como previdência, administração pública e tributação - o que aconteceu apenas parcialmente.
Dessa forma, o "espírito" do Teto era deixar claro, para a sociedade e para os atores políticos, que existem tradeoffs no orçamento, de modo que, por exemplo, para investir mais em educação, seria necessário rever isenções tributárias a determinados setores; para investir mais em saúde, se tornaria imperativo conter aumentos de salários dos servidores públicos, e assim sucessivamente. Logo, a função do Teto de Gastos não é apenas fiscal, mas é também política, fazendo com que o governo seja obrigado a melhorar sua prestação de contas (accountability) e sua performance administrativa, ou seja, melhorar resultados com menos recursos disponíveis.
Da mesma forma, a necessidade de instituir regras fiscais não é exclusividade do Brasil. Na Europa, entre 1990 e 2010, o número de regras fiscais semelhantes ao Teto de Gastos aumentou de 10 para 70. No mesmo sentido, um levantamento do FMI, de 2019, mostrou que, entre 90 países, de diversos níveis de desenvolvimento, que passaram por reformas estruturais (envolvendo áreas fiscais, trabalhistas, de comércio internacional, entre outras) entre 1973-2014, não houve, na maioria dos casos, prejuízos eleitorais para os atores políticos que empreenderam as reformas, especialmente dentro de algumas condições: reformas feitas logo no início do governo, bem planejadas e com transparência na comunicação com a população.
Mas os problemas não acabam aí. Tudo indica que, se não tivesse sido barrado pelo STF, o "Orçamento Secreto", que ao longo dos últimos anos comprometeu a transparência e a eficiência da alocação de recursos, seria mantido pelo novo governo. Do mesmo modo, nada impede que algum acordo semelhante seja feito nos próximos anos, a fim de garantir a governabilidade, num cenário de fragmentação partidária no Congresso. Mais ainda: o governo eleito propôs mudar a Lei das Estatais, com o intuito de acomodar aliados políticos no comando de empresas públicas, abrindo espaço para a falta de transparência - e até mesmo para a corrupção.
O cenário de "terra arrasada" deixado pelo governo Bolsonaro, com interferências, paralisações e desprofissionalização em diversas áreas (notadamente saúde, educação e meio-ambiente), como foi revelado pela Equipe de Transição, tem sido usado como justificativa para as novas ações. No entanto, por mais que o novo governo tenha um caráter mais profissional e comprometido com a área social, questões como responsabilidade fiscal e transparência não podem ser negligenciadas. Caso não tome medidas consideradas "impopulares" e não defina regras fiscais e de transparência logo no início do mandato, ficará cada vez mais difícil para o governo Lula III empreender reformas mais estruturais ao longo dos próximos anos, o que abre a possibilidade para que equívocos do passado venham a ser repetidos.
*Caio César Vioto de Andrade, doutor em História pela Unesp-Franca, pesquisa a história da administração pública no Brasil republicano. Atualmente é professor-monitor do Insper
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Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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