VANESSA GONÇALVES ALVAREZ* 26 SETEMBRO 2023 | 6min de leitura
Dworkin, na obra “Império do Direito”, apresentou a sua mítica teoria sobre o “juiz Hércules” na solução dos denominados “hard cases”, quando sublinhou a relevância do magistrado que possui o poder-dever hercúleo de formar a sua convicção amparado no manto constitucional. Transparência, accountability e publicidade são elementos essenciais para o Estado Democrático de Direito. Segundo registrou Norberto Bobbio, “A Democracia é o governo do poder público e em público”. É a transparência que permite o controle social e a legitimação das decisões, notadamente em um sistema como o brasileiro, que adotou o civil law, com nuances do common law, como o stare decisis.
Conforme as lições de Dieter Grimm, ex-juiz da Corte Constitucional Federal alemã entre 1987 e 1999, a política está mudando de sujeito para objeto. Enquanto os políticos costumavam ser os tomadores de decisão, agora eles se encontram no papel de autores ou réus, enquanto o papel principal é assumido pelos juízes. Os juízes diferem dos políticos em vários aspectos. Eles não devem seus cargos a eleições populares, mas é a transparência das deliberações e dos votos que concede o tom de legitimidade perante a sociedade.
A disseminação da revisão judicial na segunda metade do século XX impactou a reverberação do poder das decisões judiciais, mas o processo de tomada de decisão não é de todo acessível porque ocorre na cabeça dos juízes. Assim, na melhor das hipóteses, temos autorretratos por meio dos votos nominais cuja confiabilidade pode ser constatada através dos métodos de interpretação utilizados. Como resultado, a proporção de elementos especulativos nas descrições do comportamento judicial é relativamente alta, o que demonstra a essencialidade da transparência dos fundamentos e dispositivos de cada voto nominal.
O accountability e a transparência são imperativos no sistema do check and balances. Montesquieu, o teórico da separação de funções estatais, já defendia em sua obra “O espírito das Leis” que “il faut que le pouvoir arrête le pouvoir” (“é preciso que o poder pare o poder”, em tradução livre). Bem, só é possível limitar o poder quando se tem conhecimento de como ele é exercido, por quem é exercido e quais as circunstâncias fáticas e jurídicas adotadas como ratio decidendi, notadamente, quando a reverberação das decisões adquire nuances de verdadeira legiferação.
No texto constitucional é possível encontrar diversos fundamentos: I) O art. 5˚ inclui, no seu inciso XXXIII, o direito fundamental de acesso à informação, ressalvadas as situações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; II) O art. 37 da Carta Magna prescreve que a Administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União obedecerá ao princípio da publicidade e eficiência, elementos caracterizadores da Administração gerencialista, e, por fim, III) O art. 93, inciso IX da Constituição, dispõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, ressalvadas a preservação do direito à intimidade do interessado”.
Por sua vez, o art. 11 do Código de Processo Civil brasileiro dispõe expressamente que " Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. Igualmente, a Lei de Acesso à Informação prescreve, em seu artigo 1˚ , que se subordinam ao regime da lei todos os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, inclusive as Cortes de Contas, o Judiciário e o Ministério Público.
Vale lembrar que a Lei n˚ 10.461/2002 – que criou a TV Justiça – foi sancionada por um integrante do STF, então ministro Marco Aurélio, quando exerceu interinamente a Presidência da República durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em maio de 2002.
Também no direito comparado a publicidade é a regra. No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o art. 23 do Estatuto da Corte dispõe que as decisões, juízos e opiniões da Corte serão comunicados em sessões públicas com a notificação das partes com a publicação do voto dissidente. No que concerne à Corte Europeia de Direitos Humanos, o art. 6˚ da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos prescreve que o direito a um processo equitativo abrange o julgamento público da causa em prazo razoável, considerada a publicidade a regra dos julgamentos.
Na França, o art. L6 do Código de Justiça Administrativa dispõe que no âmbito do Conselho de Estado “Les débats ont lieu en audience publique”, ou seja, os debates devem ocorrer em audiências públicas. No mesmo sentido, o art. L10 dispõe que os julgamentos devem ser públicos e nominais, além de prever expressamente o princípio da publicidade: “Les jugements sont publics. Ils mentionnent le nom des juges qui les ont rendus”.
À título de comparação, no contexto francês de dualidade administrativa, as competências jurisdicionais centralizadas no STF no Brasil são compartilhadas com a Corte de Cassação – como órgão de última instância –, com o Conselho de Estado – como Corte de direito público em última instância – e com o Conselho Constitucional, o que corrobora para a necessária transparência e racionalidade democrática das decisões judiciais.
Ora, conforme as lições de Grimm, a interpretação constitucional está longe de ser um modelo qualquer. O controle de constitucionalidade é uma questão política e, portanto, deve se submeter ao princípio da transparência e da racionalidade das decisões. Além disso, o direito constitucional é muito mais principiológico do que um quadro de regramento expresso, conforme leciona Robert Alexy. “A lacuna entre a norma e o caso concreto é geralmente mais ampla do que no direito comum”. Ora, como seria possível, por exemplo, equalizar a legitimação de uma mutação constitucional sem que que a sociedade possua conhecimento do método utilizado na decisão? Enfim, pela patente violação à cláusula pétrea relacionada aos direitos fundamentais – efeito “cliquet” e vedação ao retrocesso – sequer caberia a tentativa de legiferação sobre o tema no Parlamento.
Assim, é importante lembrar que a sociedade brasileira tem o direito constitucional e legal de saber como vota um ministro da Suprema Corte, pois o fato de uma Constituição se provar legítima e atual depende das perguntas que lhe são feitas ao longo do tempo e, acima de tudo, das respostas que recebe por parte de seus guardiões. Por fim, somente uma interpretação democrática e transparente é capaz de salvaguardar os interesses fundamentais e sociais diante das transformações contemporâneas e garantir a relevância da Constituição para o presente.
*Vanessa Gonçalves Alvarez é advogada, mestre em Direito Público e titular de LL.M em Direito francês e europeu pela Université Paris 1 Panthéon - Sorbonne
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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