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  • tayane16

Uma reforma na Lei de Improbidade Administrativa, que não atende às exigências da sociedade


A corrupção no Estado Brasileiro é uma realidade incontestável, e diversos são os fatores sociais, econômicos, políticos e culturais que podem ser explicar esta tragédia que segue pandemicamente contaminando a vida pública (e privada) nacional. Isto é uma obviedade, que sequer o negacionismo atual consegue abater. Ao longo dos últimos anos diversos projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional, na tentativa de mudar o sistema jurídico brasileiro, na temática anticorrupção, uma vez que o direito também pode favorecer ou desfavorecer a prática da corrupção, bem como aprimorar os instrumentos para preveni-la ou reprimi-la.


O mais recente, que está aguardando apreciação da Câmara dos Deputados, é o Projeto nº 10.887/2018, que pretende promover uma reforma no mais relevante sistema de enfrentamento da corrupção do Brasil, institucionalizado e implementado desde a refundação do nosso Estado Democrático, em 1988. Refiro-me à repressão cível de atos de improbidade administrativa, através de ação civil pública, junto ao juiz federal ou estadual competente, aplicando a Lei nº 8.429/1992 (Lei Geral de Improbidade Administrativa – LGIA).


O projeto de lei foi apresentado pelo Deputado Roberto de Lucena, a Relatoria é do Deputado Carlos Zaratini. Sua versão original foi produzida pela Comissão de Juristas, criada pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e coordenada pelo Ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em outubro de 2020, o Relator apresentou uma proposta de Substitutivo, e que introduziu mudanças significativas no projeto originário. Na verdade, o Substitutivo desvirtuou escancaradamente a proposta, na medida em que incluiu ou reformulou dispositivos que, se aprovados, promoverão passos longos de retrocesso institucional na luta contra esta patologia político-administrativa.


O retrocesso é visível e intolerável, não apenas considerando o que já se alcançou domesticamente no campo da improbidade (nestes quase 30 anos), mas também levando em conta os compromissos assumidos pelo Brasil, perante a Comunidade Internacional, em especial os cuidadosamente desenhados na Convenção da ONU contra a Corrupção (Decreto nº 5.687/2006). Uma frase para resumir o recuo despropositado: “Uma forma de reencarnação de uma disciplina vetusta que não atende mais aos reclamos da sociedade brasileira, do Século XXI, que enfrenta um grave impacto da corrupção, a nível local, regional, nacional e internacional”, utilizando os dizeres na Nota Técnica produzida pelo MPF e contrária às medidas irrefletidas, fragilizadoras do sistema brasileiro anticorrupção.


A melhor forma de perceber isto é olhar para a pretendida revogação do ilícito hoje contemplado no artigo 11 da LIA, que trata da ofensa aos princípios da Administração como ato de improbidade administrativa. Não há nenhuma avaliação das consequências da medida revogadora (o que viola flagrantemente as diretrizes da festejada e inaplicada LINDB). Busca-se, com todos os meios, restringir a prática da improbidade às situações de corrupção passiva e de prejuízo doloso ao erário (típicas do campo penal). Uma mudança normativa que compromete não só o futuro, mas igualmente o presente, porque, em sendo regra favorável, será aplicada aos casos em julgamento e julgados.


Ignora o Substitutivo que a Constituição refundou nosso dever republicano de atuar contra qualquer violação do valor fundamental da moralidade administrativa (artigo 5º, inciso LXXIII) e da probidade (artigo 37, parágrafo 4º), deixando no passado a reprimenda apenas ao recebimento de propinas (enriquecimento ilícito) e às condutas danosas ao Erário. No cenário atual, atos de improbidade administrativa são ações e omissões de agentes públicos (conjuntamente com terceiros). que achicalham ou gracejam a organização republicana do Estado. Violam, sob luzes ou sombras, o interesse público anticorrupção que funda a atividade de Direito Administrativo Sancionador da Improbidade.


O que é mais impressionante é o cancelamento, a falta da leitura da Convenção da ONU contra a Corrupção, que é claríssima em estabelecer que o sancionamento nela preconizado independe da ocorrência de danos ao patrimônio público (artigo 3, item 2), e que sanciona o abuso de funções como ilícito próprio (artigo 19). Inúmeras formas gravíssimas de atentar contra a probidade na organização do Estado – e repaginadas e reinventadas no cotidiano da Administração Pública no Brasil – são hoje enquadradas na violação à legalidade, imparcialidade e à lealdade às instituições (art. 11, caput da LIA), na exata medida que autoriza a norma constitucional (art. 37, §4º). Ao assumir esta condição, o administrador está submetido a esta matriz de agir impessoal, objetivo e isento.


O Substitutivo não enxerga a sabedoria e vontade da Constituição, que conscientemente se dirige a reduzir as mazelas de uma sociedade profundamente patrimonialista, cujas formas de favorecimento privado e de lesão a interesses públicos é infinitamente criativa, novidadeira. Salvaguardar a probidade (e todos os valores que a espelham) é uma diretriz irrenunciável do direito público brasileiro, sobretudo pela inquestionável presença e indispensável atuação, atual e permanente, do Estado (de seu aparelhos e de seus agentes) para transformar o panorama de desigualdades de toda índole que se reproduzem nos diversos cantos na Federação. Resguardar a honestidade, o zelo e a impessoalidade são atribuições indeclináveis no exercício de qualquer função pública.


O retrocesso citado governa e convive com os demais alinhavados em outras regras do Substitutivo, que, no conjunto, mostram o objetivo estonteante de promover uma previsível ruptura na linha ascendente de contenção da corrupção. O Substitutivo quer também: que seja demonstrado, milimetricamente, em cada situação, o ânimo psicológico do agente responsável na prática da improbidade, o que é deveras excessivo e inalcançavel; que seja possível evadir-se da responsabilidade alegando o acusado de mera divergência interpretativa da lei; que pessoas jurídicas beneficiárias – não raro as que alimentam e se beneficiam da corrupção pública – só sejam condenadas se demonstrado o conhecimento prévio de quem ocupa, em seus registros formais, a sua representação legal, e mesmo assim, se demonstrado um benefício direto em favor destas. É muito interesse particular para nenhum interesse público. Esta previsão de “dolo específico” e do “proveito direto” ignora a tendência estampada pela Lei nº 12.846/2013 (denominada Lei Anticorrupção) que adotou expressamente a responsabilidade objetiva para pessoas jurídicas em corrupção.


A realidade de práticas corruptivas no Brasil demonstra que cada vez mais a diversidade, complexidade, clandestinidade e ocultamento são caracteres elementares dos favorecimentos ilegais, revelando os trajes abjetos que lhes vestem o figurino atual. Corporações corrompem, e agentes públicos são corrompidos, sob formas inumeráveis do irrastreável, do incongruente, do obscuro, do imotivado, do transfigurado, do engodo, enfim, do degenerado que se oculta em moldes crescentemente desafiadores à sua detecção e repressão.


O Substitutivo, com requinte do inexplicável, ainda ressuscita uma diferenciação entre os conceitos de agente político e agente público, como se o primeiro não fosse espécie do segundo. Mas a sociedade brasileira tem memória, e sabe a dificuldade encontrada nos Tribunais para que nenhum agente público pudesse se livrar de condenações por improbidade administrativa, uma vez praticado ato ilícito descrito na legislação. Chefias de Poderes Executivos e membros de Poderes Legislativos podem e devem sofrer perda da função pública e suspensão de direitos políticos, se praticam ilícitos que se enquadram na LGIA.


Mesmo recorrendo a todo momento ao ideal de segurança jurídica, diversas proposições do Substitutivo ignoram a consolidação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, órgão do Poder Judiciário Brasileiro a quem compete tutelar a uniformidade na aplicação de lei federal (art.105 da CF). É o caso da não menos inconsequente proposta de revogação da modalidade culposa de atos de improbidade administrativa, e da insistência vazia de incluir a demonstração de periculum in mora, para a decretação da indisponibilidade de bens, medida que visa assegurar a execução da futura sentença condenatória, em favor dos entes público lesados.


O Substitutivo não economiza nem mesmo em matéria de acordos no campo da improbidade administrativa. Após décadas de manutenção de uma proibição geral na Lei nº 8.429 (artigo 17, §1º, versão original), sabe-se que a consensualidade foi aos poucos sendo incorporada ao campo da prevenção, dissuasão e punição de atos de improbidade. Primeiramente, com os Acordos de Leniência, previstos no artigo 16 da Lei nº 12.846, admitidos no campo da Lei nº 8.429. Em segundo momento, com a Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anti-crime”), com os Acordos de Não Persecução Cível (ANPCs). Sem nenhuma justificação racional senão a de travar a adoção de acordos celebrados pelos Ministérios Públicos –, o Substitutivo condiciona a celebração de ANPCs à anuência de órgãos de advocacia pública, retirando, por conseguinte, celeridade e efetividade deste instrumento consensual, e inobservando a legitimidade do Parquet para proteção do patrimônio público e social (artigo 129, inciso III, da CF).


A Lei de Improbidade Administrativa precisa de aperfeiçoamentos, pois a criação ou construção do sistema anticorrupção brasileiro é um imperativo constante da sobrevivência da Democracia em nosso País. Melhorar a capacidade dissuasória e racionalizar o sistema sancionador é sinônimo de fortalecimento. Qualquer projeto de lei que negue esta necessidade, representa só um ideal: desconstruir para nada colocar em seu lugar, senão a vitória de poucos às custas de muitos.


*José Roberto Pimenta Oliveira, procurador Regional da República em São Paulo. Professor de Direito Administrativo da PUC-SP.

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