As ainda constantes e inacabadas repercussões das grandes estratégias de combate à corrupção recentemente levadas a efeito no Brasil – com destaque para a polêmica Operação Lava Jato – geraram um efeito colateral marcadamente nefasto: a perda da legitimidade da função de controle, tanto em sua faceta externa como interna e social.
O rastro de descrédito, frustração e mal sucedidos malabarismos jurídicos findou por – infelizmente – criar um ambiente propício a uma retração das políticas de controle da ação pública, com o consequente encurtamento das possibilidades e limitação das ferramentas voltadas à promoção de uma Administração Pública mais íntegra e consentânea com os valores éticos e jurídicos constitucionalmente consagrados.
Observa-se, não sem grande angústia, a extinção/restrição de assentos representativos da sociedade civil nos conselhos de políticas públicas; a resistência institucional e reiterada às medidas de transparência e abertura de dados (inclusive por meio de uma inadequada e de muito mal gosto instrumentalização da LGPD), totalmente condicionantes do controle social e medidas de accountability em geral, inclusive quanto à legitimidade e responsividade das políticas, estratégias e prioridades adotadas; a tentativa de interferência entre poderes, com inadmissível pretensão de afastamento – ou relativização – do princípio fundamental da separação de poderes e lógica de freios e contrapesos, historicamente consagrada e assimilada em todo o mundo civilizado.
Não se pode ignorar, ainda, as diversas iniciativas legislativas voltadas ao desmantelamento do sistema brasileiro de combate à corrupção e promoção da integridade – dentre as quais ocupa inconteste primeiríssimo lugar em termos de acinte e ousadia a nova Lei de Improbidade Administrativa.
Referido diploma, para além de criar fantasiosas estratégias garantidoras da não submissão de agentes faltosos à sua disciplina – ficção jurídica que considera como de pena cumprida período de pleno gozo de direitos políticos; proibição do magistrado ‘dizer o Direito’, de modo a ficar inafastavelmente vinculado à qualificação legal do fato indicada na peça inaugural; possibilidade de inédita metamorfose da natureza da ação, de improbidade para ação civil pública (???), por iniciativa judicial…. – trouxe ainda seríssimos pontos relacionados à segurança jurídica e previsibilidade quanto ao tratamento do atos em tese qualificados como de improbidade.
A sensação de impunidade, a sanha de relevar malfeitos e irregularidades é tamanha que, como um tsunami que varre tudo o que encontra pela frente sem permitir que nenhuma estrutura, padrão ou referência anteriormente assimilada permaneça em pé, vem criando situações em que até mesmo os fundamentos mais basilares do Estado brasileiro, os valores mais centrais da constituição e organização da nossa sociedade sejam relegados a uma segunda categoria – e por vezes simplesmente ignorados, anulados.
Vê-se, nesse sentido, importantes – e alarmantes – desdobramentos das discussões atinentes à retroatividade (ou não) da nova LIA.
À parte das discussões quanto à natureza da ação – que, segundo o artigo 37, 4º, da CF é não penal; e, conforme o desastroso artigo 17-D da Lei 14.230/21, não é civil – há que se lembrar do Pacto de San Jose da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário desde 1992 e, portanto, integra o rol das garantias fundamentais consagradas pelo nosso ordenamento, nos termos do artigo 5º, §§2º e 3º da CF.
Segundo tal diploma, a referida discussão quanto à retroatividade – cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF no âmbito do Tema 1199 do STF -, deve ser em regra reconhecida em benefício do réu: art. 9º: “Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável.”
Tal retroatividade, porém, não é, por evidente, absoluta, devendo ser aplicada e reconhecida de forma contextualizada, respeitados os demais parâmetros fundantes do ordenamento pátrio.
Alheia a essa premissa básica, vem causando surpresa tendência manifestada por parte da jurisprudência no sentido de outorgar alcance quase que absoluto e universal à exclusão da ilicitude do ato até então inequívoca e formalmente inquinado de improbidade.
Foi o que se verificou, exemplificativamente, com a decisão prolatada pelo Juízo da Vara única de São Bento, na Paraíba, nos autos do processo n. 0000080-78.2002.8.15.0881, que reconheceu a retroatividade da nova lei para alcançar atos já julgados definitivamente, cujo deslinde havia já sido sedimentado pela coisa julgada.
Mais: a decisão em questão não decorreu de propositura de ação rescisória, resultando de análise de simples pedido do réu levada a efeito pelo juízo de primeiro grau após prolação de sentença condenatória mantida pelo Tribunal competente e com trânsito em julgado formalmente reconhecido.
Com respeito aos entendimentos em sentido contrário, não se pode admitir que decisão judicial venha a afastar o disposto no artigo 5º, XXXVI da CF, que, combinado com o artigo 60, §4º da mesma Carta, consagra justamente a cláusula pétrea de proteção à coisa julgada.
Realmente, a coisa julgada deve ser fielmente observada, tanto pelo Estado-lei quanto pelo Estado-juiz, sob pena de perpetuação das discussões e indesejável – para se dizer o mínimo – comprometimento da função pacificadora da atividade jurisdicional.
Conforme lição de Nelson Nery Júnior, “A supremacia da Constituição está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático, fundamento da República (CF 1º caput), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas da doutrina e jurisprudência (…)”.[1]
Segurança jurídica, previsibilidade, respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada não podem ceder espaço a pretensões pouco convincentes de exclusão de ilicitude de atos inequivocamente contrários aos interesses públicos e, portanto, prejudiciais de toda a sociedade – com reconhecimento formal e oficial de tais circunstâncias.
A edição de nova Lei – mais frouxa, benevolente e de dificílima configuração de hipótese de incidência nos apertados prazos prescricionais estabelecidos – não pode servir de panaceia libertadora, de abolição generalizada de atos altamente repreensíveis (posto que ofensivos à moral e à ética administrativas) e imediata e ilimitada reabilitação de agentes faltosos, praticantes de atos ilegais que, como que por mágica, deixam de ser considerados como tais.
Pobre do país que vê os seus valores fundantes sujeitos às conveniências e idiossincrasias dos agentes políticos de plantão…
[1] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 10ª ed. rev., ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 685-686
*Laura Mendes Amando de Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Excontroladora-geral do Município de São Paulo. Professora do Insper
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Leia a materia na integra no portal do Estadão:
Commentaires