Retroatividade da lei 14.230/21 representa um salvo-conduto para condenados por improbidade administrativa, escreve Roberto Livianu
Em 2014, José Riva, o campeão nacional de ações de improbidade administrativa (do Mato Grosso), Neudo Campos (Roraima) e José Roberto Arruda (Distrito Federal), mesmo sendo notórios “fichas sujas” nos termos definidos pela Lei da Ficha Limpa, bateram às portas de seus partidos sabendo que, pelas vias legais, não poderiam ser candidatos.
Mas, que importância tem uma vedação legal no Brasil, pensaram? Especialmente para bloquear os donos do poder. Mesmo com conhecimento induvidoso em relação à ilegalidade da situação, mancomunados com os respectivos partidos, obtiveram as legendas para serem candidatos aos governos de seus Estados. Isto advém da certeza da impunidade.
O cálculo era engenhoso. Seriam apresentados aos eleitores como os nomes ungidos, usufruiriam da exposição inerente às campanhas, inclusive em rádio e TV, aproveitariam o recall eleitoral de campanhas anteriores, vez que já eram nomes conhecidos do eleitorado. Lá na reta final, se barrados fossem pelo TSE, entregariam o bastão para um nome associado, muito próximo a eles.
Dito e feito. Poucas semanas antes do pleito, houve a decisão final da Justiça Eleitoral que os impedia de ser candidatos. Naquela altura, com os nomes consolidados, nos 3 casos a solução maquiavélica foi exatamente a mesma –as mulheres de cada 1 dos 3 políticos barrados foram apresentadas como candidatas estepes– partindo da premissa que o eleitor é gado e não discerne o que há por trás de tudo isto.
Nos casos do Distrito Federal e do Mato Grosso não houve sucesso, mas no de Roraima a manobra foi exitosa e isto está registrado nos anais da política nacional. Na 1ª semana no cargo, Suely Campos nomeou mais de 30 parentes para integrar a administração pública daquele Estado.
Eis que, 7 anos após o episódio, tudo ficou mais fácil para políticos e outros agentes públicos que queiram violar as regras do jogo do poder. A Lei 14.230/21 teve urgência de votação aprovada na Câmara em 8 minutos e o relatório apresentado no Senado em 24 horas rejeitou todas as emendas por relator que se posicionou na CCJ contra a realização de audiência pública para ouvir a sociedade.
O substitutivo Zarattini (que desfigurou totalmente o projeto original) não foi debatido em sequer uma audiência pública na Câmara. Detalhe: o autor do projeto, Roberto de Lucena, tamanho foi o desatino da desfiguração, votou contra o próprio projeto, fato inédito na história política do país.
Este diploma garante impunidade por força de lei. Proíbe punições de improbidades culposas, exige dolo específico para punir improbidades com dano (como se fosse norma penal), estabelece prazos prescricionais que fluem num piscar de olhos, tornando, portanto, impuníveis como improbidade os assédios sexuais e morais, as carteiradas, desvios de vacinas, atos de tortura e muito mais.
Agora as improbidades sem dano ao patrimônio só podem ser punidas se previstas taxativamente (como se fosse norma penal, que não é). Uma bênção para os descumpridores da lei.
Criaram a embalagem fake disseminando a narrativa que sofreriam um tal “apagão das canetas”. Mas os tais promotores abusadores do poder não foram por eles enquadrados pela draconiana nova lei de abuso de autoridade (aquela que persegue juízes e promotores, que não contém um tipo penal incriminador contra políticos)?
A nova Lei 14.230/21 torna incomensuravelmente mais suave a vida dos violadores, já havendo pedidos reiterados no sentido de que a norma seja aplicada retroativamente, como se fosse lei penal, um dos objetivos dos construtores do esmagamento da Lei 8.429/92 –tornar o caminho da punição difícil, mas ao mesmo tempo ampliando os campos argumentativos para a defesa.
É sabido que a retroatividade de lei mais benéfica é consequência específica, exclusiva do direito penal, o que decorre de sua especificidade. Assim como a taxatividade das condutas proibidas. Só o direito penal o exige. Se o Estado resolveu querer punir criminalmente de forma mais branda ou decidiu deixar de punir, a clemência aplica-se de imediato. Isto não vale para outros ramos do Direito.
A hipótese aventada de aplicação retroativa da Lei 14.230/21, com todas as suas bondades e impunidades encomendadas significaria um salvo-conduto pela porta dos fundos. Uma não-punição indevida, já que quase todas as improbidades judicializadas ocorreram sob a vigência da Lei 8.429/92. Muitas delas praticadas mediante culpa, sem apontamento de dolo específico. Uma enormidade de casos seria fulminada pelas novas regras da prescrição, criadas sob encomenda para a impunidade, que fluem num piscar de olhos.
Justamente por isto o ministro Alexandre de Moraes decidiu monocraticamente no sentido da não-retroatividade da Lei 14.230/21. O plenário julgará o mérito da ADI em 13 de agosto, em poucas semanas. Mesmo assim, o presidente do STJ acaba de restaurar, como plantonista, os direitos políticos de José Roberto Arruda.
Arruda foi processado e condenado em definitivo, mas sequer terá de esperar o julgamento do STF, pois a nova lei, apontada por muitos como inconstitucional, já produziu efeitos retroativos em seu favor. Poderá pedir votos e ser eleito novamente e reiniciar o ciclo.
Em 13 de agosto, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade, seguindo o caminho da decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, de, ao menos preservar o caráter não retroativo da Lei 14.230/21, vez que não é lei penal. Até porque a ADI 7156 questiona 10 pontos capitais de afronta desta lei à Constituição. O Congresso pode e deve rever as leis, nos limites constitucionais. Não permitamos a anistia aos corruptos pela porta dos fundos.
Autor ROBERTO LIVIANU
PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’
Leia a matéria acessando o link abaixo no portal Poder 360: https://www.poder360.com.br/opiniao/a-anistia-a-corruptos-pela-porta-dos-fundos/
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