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A vida é bela?

Laura Mendes Amando de Barros*

16 de novembro de 2022 | 05h00


A intensa polarização que marcou o país durante o processo eleitoral recém-finalizado foi sem precedentes, e a ansiosa espera por um desfecho definitivo – ainda que decepcionante e indesejado para muitos -, não se aperfeiçoou até o momento.


A calmaria, a serenidade e a definição – repita-se, triste e melancólica para vários brasileiros que viram o seu candidato derrotado – infelizmente não se instalaram no nosso país.


Contrariamente, rachas e rupturas ideológicas ganham impulso e estímulo nas lamúrias e mobilizações levadas a efeito por seguidores do futuro ex-presidente.


A intensidade dos movimentos em defesa de um ou outro representante, a sensação de pertencimento decorrente da estruturação de grupos – presenciais e virtuais – de identidade ideológica, em que a tônica é a autolegitimação, o auto referenciamento e a auto validação de posturas e teorias viabilizaram o surgimento de ‘estratégias’ até pouquíssimo tempo tidas como inadmissíveis, desumanas e ofensivas aos direitos fundamentais mais comezinhos.


Nesse sentido, causa espanto a ideia de categorização, de classificação de pessoas conforme as suas convicções políticas, ou, pior, em razão de um único ato, consistente no voto em determinado candidato, independentemente dos motivos que os tenham conduzido a tal – iniciativa determinante, inclusive, de reação por parte de diversas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, como as de Jaboticabal, Birigui, Foz do Iguaçu e São Paulo.


O ressuscitamento de métodos típicos de regimes radicais totalitários baseados na existência de distintas classes de seres humanos – umas merecedoras da plenitude da vida, outros a serem de tudo privados, ou mesmo extirpados -, demonstra o grau de desmantelamento da nossa sociedade.


Os séculos de falta de acesso da maioria da população aos direitos básicos à educação, cultura, habitação, saúde, saneamento e assistência social (para citar os mais fundamentais) não podem ser invocados como justificativa para o recrudescimento – e expansão – de medidas discriminatórias e depreciativas de qualquer cidadão que seja.


Nesse sentido, as ‘listas’ elaboradas por alguns apoiadores do futuro ex-presidente com a relação dos supostos eleitores do ‘lado oposto’, como se: 1. simplesmente inexistisse a garantia do segredo do voto; 2. Fosse dado a qualquer cidadão categorizar pessoas, em razão de suas convicções, de modo a dificultar/inviabilizar a sua atividade econômica e, portanto, a própria subsistência.


Tais iniciativas, sob o aspecto eminentemente técnico, independentemente das escolhas e bandeiras de momento, são absolutamente incompatíveis com a ordem constitucional vigente, mostrando-se ofensiva das nossas cláusulas pétreas, sobre as quais é erigida toda a nossa organização social.


Para além disso, subsomem-se na vedação constante do artigo 312 do Código Eleitoral, cuja ofensa é punida com pena de detenção, de até dois anos, sendo passível de penalização, inclusive, a forma tentada, conforme precedente consubstanciado no acórdão do TRE/PR no Recurso Criminal 15437¹.


Nesse particular, de registrar que a divulgação do teor do voto por terceiros não é admitida sequer com aquiescência do eleitor, posto se tratar de direito indisponível:


Recurso Criminal. Ação penal. Crime eleitoral. Art. 312 do Código Eleitoral. Uso de celular para fotografar voto. Violação do sigilo de voto. Absolvição sumária. Atipicidade reconhecida. Impossibilidade. Núcleo do tipo penal que se aplica em relação ao próprio eleitor. Recurso conhecido e provido para que o feito retorne ao juízo de origem e tenha o seu normal prosseguimento. (TER/PR. RC 13738)


Potencialmente se enquadram, da mesma forma, no artigo 7º, VII da Lei n. 8.137/90, que trata dos crimes contra a ordem econômica e relações de consumo, com pena de 2 a 5 anos de detenção, ou multa.


Ainda que assim não fosse, que a Carta de 1988 houvesse silenciado sobre tais aspectos, de se lembrar dos documentos internacionalmente construídos e propagados² após o descortinamento dos horrores do nazismo, quando o mundo testemunhou, atônito, a triste revelação de que o ser humano, quando contrariado ou sedento de poder, é capaz alcançar níveis extremos de crueldade e desumanização.


Desumanização. É esse o triste processo que assistimos em parte da sociedade brasileira. Como se ‘os outros’, que não compartilham de determinada opinião ou ideologia, não fossem dignos de respeito, de solidariedade, de um olhar que o reconheça como semelhante.


Posturas tais restringem a complexidade ínsita ao ser humano a uma convicção, a um ato, a um voto; turva os limites do razoável – e do legal – como se, por uma causa (qualquer que seja), fosse admissível a criação de ‘classes’ de pessoas.


Todos os que tiveram a chance de assistir o sensível, tocante e comovente filme ‘A vida e bela’, de Roberto Benigni, muito provavelmente não ficaram impassíveis diante do horror poeticamente retratado.


A negação da condição de semelhante, da busca da extirpação do outro em razão de crenças, convicções ou ideologias são elementos que presenciamos no Brasil de hoje: discordâncias ideológicas inconciliáveis, sentimento de superioridade/inferioridade, noção de suposta legitimidade da exclusão de grupos, restrição de direitos em virtude de convicções, ódio e revanchismo – que em nada contribuem para o aprimoramento do nosso país (com a incompreensível transmutação das responsabilidades pelo desmantelamento ético e social dos representantes eleitos para determinados grupos de eleitores, como se fossem eles os únicos responsáveis pela obra prima, escrita a muitíssimas mãos, da nossa falência organizacional política, cultural, econômica e social).


É urgente o reconhecimento de que questões atinentes às crenças e convicções pessoais são, justamente, pessoais. Não devem – e não podem – ser instrumentalizadas como forma de coação, exclusão ou discriminação.


Não se pode imaginar um país minimamente saudável com o desprezo aos seus valores fundantes, com as ostensivas agressões aos direitos e garantias individuais com a frequência assistida recentemente.


Nesse cenário, todos os atores terão indispensável papel para a superação da crise de confiança, solidariedade e valores que ora se apresenta: Judiciário, Executivo, Legislativo, imprensa e sobretudo sociedade civil terão que agir juntos, de modo coerente e coordenado.


A contenção de excessos, a serenidade para desenvolver políticas inclusivas e estratégias capazes de lidar com as paixões de forma respeitosa e diversa, a criação de um arcabouço normativo responsivo às novas demandas, a responsabilidade na divulgação de informações e o engajamento mais amplo possível serão decisivos para a superação do racha em que se encontra o país.


É hora de superar as disputas institucionais, as competições ideológicas, as brigas e paixões exacerbadas e trilhar o caminho rumo à ‘normalidade democrática’, com a consagração dos direitos e garantias individuais exatamente onde devem estar: no âmago de todo o processo.


Quem sabe assim viveremos um país ‘bonito por natureza’, levando uma vida à altura.


¹Recurso criminal. Ação penal. Crime eleitoral. Tentativa de violação do sigilo do voto. Ofensa ao art. 312 do Código Eleitoral. Configurado. Condenação em 15 (quinze) dias de detenção em regime aberto. Substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos mantida. Recurso conhecido e desprovido. 1. O tipo penal descrito no art. 312 do Código Eleitoral tem por finalidade a proteção ao sigilo de voto e visa punir toda a atitude inclinada a violar o segredo da votação. 2. O crime em apreço é classificado pela doutrina como delito de atentado ou de empreendimento, uma vez que prevê expressamente, em sua descrição típica, a conduta de tentar o resultado, o que significa dizer que o sujeito já praticou a conduta nuclear típica quando tenta violar o sigilo de voto. 3. Mantida a pena restritiva de direito, consistente no pagamento de um salário mínimo (…). 4. Salienta-se o caráter preventivo da pena, no sentido de prevenir a ocorrência de futuros delitos, numa visão que torna a pena útil à sociedade, pois além de servir como exemplo (prevenção geral), atua de forma direta sobre o agente que praticou o ilícito (prevenção especial). (…) (TER/PR. Recurso Criminal 15437, Ribeirão Claro)


²Tais como a fundamental Declaração Universal dos Direitos do Humanos, de 1948 e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966.


*Laura Mendes Amando de Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora-geral do Município de São Paulo. Professora do Insper


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica


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