Ana Cláudia Scalquette* 12 Julho 2023 | 4min de leitura
Temos vivido nos últimos anos, com muita intensidade, um verdadeiro bombardeio de notícias sobre decisões judiciais. Prisões, absolvições, bloqueios, multas, recursos... expressões até então muito restritas aos chamados "operadores do direito" agora são bastante populares. Não seria exagero afirmar que "nunca antes na história deste país o Judiciário teve tamanho destaque nas pautas jornalísticas...".
Não seria este um cenário esperado já que o sistema adotado pelo Brasil é o Sistema da Civil Law e não o da Common Law.
Para os leitores que não estão familiarizados com os termos jurídicos "Civil law" e "Common law", uma breve explicação.
O Brasil adota o sistema da Civil Law, ou seja, do direito positivado, aquele previsto em lei.
Nos EUA, por exemplo, o sistema é o da Common Law, entendido como aquele que se constrói baseado nos precedentes judiciais, nos casos preexistentes que foram julgados pelos tribunais. Onde existir o mesmo fato, espera-se que exista a mesma decisão, razão pela qual o papel do Judiciário é preponderante.
Nos últimos anos, todavia, temos tido inúmeras e até necessárias interpretações judiciais, sobretudo emanadas dos Tribunais Superiores, preenchendo lacunas e dando uma interpretação conforme a Constituição Federal para questões muito relevantes envolvendo matérias ultrassensíveis como as relativas às famílias e à liberdade.
O que nos causa espécie, contudo, é o fato de que estas interpretações excepcionais acabaram por aparecer com mais frequência do que o esperado, trazendo para a atuação do Poder Judiciário um holofote indesejado.
Parece-nos que quando o número de decisões excepcionais chega a ser tão expressivo a ponto de ensejar coberturas jornalísticas de mais de 24 horas ininterruptas, algo não vai bem.
Pode-se, todavia, pensar que a atuação do Poder Judiciário sempre foi assim e que a mudança que ocorreu foi nos meios de comunicação, agora mais ágeis, em tempo real na internet, o que acaba por permitir os comentários instantâneos de alguns "juristas de ocasião".
Aliás, a palavra jurista nunca esteve tão desrespeitada. Criou-se, inclusive, uma guerra de argumentos com palavras e pensamentos "cortados" de juristas para justificar os mais diversos absurdos interpretativos.
Importante destacar que a divulgação de decisões judiciais é muito mais do que desejável. Ela contribui para o amadurecimento jurídico, tornando-se material a ser analisado e discutido nas salas de aulas nos Cursos de Direito, além, é claro, de fomentar novas discussões no âmbito do Parlamento. Banalizá-la, porém, a ponto de se criar um "Fla-Flu", destacando posicionamentos de "tal jurista", de "tal ministro ou ministra" ou fazer da ciência jurídica e das decisões e interpretações judiciais uma bandeira que se mistura com política e outros temas que despertam paixões, certamente não nos trará ganho, mas sim perdas irreparáveis.
Perde o espírito republicano, perde a sociedade, perde a respeitabilidade jurídica, perde o desenvolvimento do país porque se perde o que se tem de mais caro e mais sensível na ciência jurídica que são a cautela e a estabilidade.
Buscar que o comportamento nas redes sociais mude e que as pessoas sejam responsabilizadas pelos seus comentários inverídicos e de desinformação é medida necessária, mas não totalmente eficaz.
O que se precisa mudar é o comportamento do próprio judiciário, dos juristas, dos cientistas do direito, dos corpos docente e discente das Universidades e de todos os que trabalham na área, pois a seriedade e a complexidade das questões jurídicas não podem servir para discussões em redes sociais que se sucedem sem que haja qualquer aprofundamento ou visível solução.
Inegável que o problema da corrupção no Brasil é crônico, mas ao invés de discutirmos condenações ou absolvições devemos discutir novos sistemas integrados para combate à corrupção, aperfeiçoamento de regras de compliance e a reforma política, por exemplo.
Este ciclo vicioso de escândalos que se sobrepõem - veiculados com comentários rasos sobre decisões judiciais e politização do discurso jurídico com análises apartadas da técnica - não nos permite evoluir. Estamos presos, faz alguns anos, neste círculo alienante e desprovido de objetivos que nos permitiriam avançar para realizar nosso propósito maior que é o de vivermos em uma sociedade mais igual e pacífica.
Não é preciso pensar muito para concluir que as condenações são a fotografia oficial de que a organização nacional não vai bem e certificam que chegamos ao extremo com a aplicação da lei penal.
Saber que o Judiciário ocupa papel de destaque em nossa sociedade é identificar uma triste realidade: o Brasil está doente e estamos discutindo o tratamento paliativo com a intensidade que deveríamos dedicar à descoberta da cura.
Saiamos deste ciclo vicioso. Caso contrário, continuaremos no tratamento paliativo, vegetando no prolongamento de uma vida infeliz.
*Ana Cláudia Scalquette, advogada, escritora e professora universitária. Doutora em Direito Civil pela USP e Conselheira Estadual da OAB/SP
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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