Tradicionalmente, no que diz respeito ao papel do Estado na regulação da economia, costuma-se fazer referência a dois pontos de vista opostos. De um lado, ter-se-ia o modelo liberal absoluto, de acordo com o qual o Estado, na linha da teoria da “mão invisível” de Adam Smith, deve esperar que as empresas alcancem, sozinhas (donde se falar em desregulação), em razão da natural competição entre elas, sistemas eficazes de contenção de riscos. De outro, ter-se-ia o modelo de intervenção estatal puro, caracterizado pela redação, por parte do Estado, de forma exclusiva, das normas de aplicação generalizada (daí se falar em heterorregulação), competindo a ele, ainda, a supervisão do seu cumprimento e, se necessário, a sanção de infrações. Ocorre que, entre um extremo e outro, foram se desenvolvendo modelos intermediários (mecanismos de intervenção estatal mistos ou de autorregulação), os quais, hoje, são considerados mais eficazes, nessa tentativa de harmonizar os interesses das empresas com os do grupo social[2].
Se, por um lado, a história provou o fracasso da desregulação, realmente, nos dias atuais, a heterorregulação não nos parece mais sustentável, sobretudo por dois motivos. Em primeiro lugar, porque, em razão da progressiva complexidade da vida social e do aumento dos níveis de especialização, tecnológicos e de globalização, o Estado já não tem capacidade de regular, de forma adequada, todas as estruturas empresariais. E, em segundo, porque, em decorrência da crise do Estado Social, este já não possuiria capacidade financeira para assumir os altos custos dos processos de regulação das mais diversas atividades, de supervisão e sanção em âmbitos, por vezes, bastante complexos. Daí a reconhecida necessidade de o Estado mudar sua “estratégia reguladora”[3].
Desse modo, em sendo o Estado incapaz de regular as empresas desde fora, vislumbrou-se uma alternativa: valer-se delas para conseguir seus objetivos[4]. Com a autorregulação, portanto, o que se objetiva não é desregular, mas regular de forma mais rigorosa e eficaz, sem ignorar as especificidades de cada seguimento empresarial. Os particulares, assim, são instados a se autorregularem; são envolvidos no cumprimento de certas metas do grupo social[5].
No âmbito da autorregulação, o modelo teórico mais comumente adotado é o da autorregulação regulada (enforced self-regulation)[6], definido por Sieber como “o processo em que o legislador estatal se limita a estabelecer requisitos de partida ou incentivos para a autorregulação ou condições para outorgar efeitos jurídicos ao regulado”[7]. Destarte, ao mesmo tempo em que o ente privado é incorporado ao processo de regulação, sua participação fica subordinada ao cumprimento de requisitos ou ao respeito a fins públicos ditados pelo Estado.
Nesse contexto, de autorregulação regulada e de Estado regulador, é que, em nosso sentir, deve ser estudado o instituto do corporate compliance[8] [9]. Ele surge, então, como um sistema, cuja adoção, pelas corporações, é incentivada pelo Estado. Sistema que abrange regras, medidas e processos, dentro das empresas, capazes de tornar a conformidade ao ordenamento jurídico, ali, algo habitual e institucional, em vez dependente de compromissos individuais[10]. Assim, não nos parece ter razão Modesto Carvalhosa, quando sustenta que, atualmente, nota-se um retorno da autorregulação para a heterorregulação, inserindo-se o compliance nesse ambiente[11]. A nosso ver, ainda que haja uma progressiva transmutação de normas de good governance em leis estatais imperativas – como aponta referido autor –, tal tendência não afasta o modelo de autorregulação. Afinal, o processo de regulação, como já deixamos antever, não abrange apenas a edição de normas, mas também a fiscalização do seu cumprimento e, eventualmente, a aplicação de sanções[12].
[1] Este texto corresponde ao item 3.2., do livro A prevenção da corrupção na administração pública: contributos criminológicos, do corporate compliance e public compliance (Editora D´Plácido), do mesmo autor.
[2] Cf. IVÓ COCA VILA, ¿Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada?, in Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas, SÁNCHEZ, Jesús-María Silva / FERNÁNDEZ, Raquel Montaner (eds.), Atelier Libros Jurídicos, Barcelona, 2013, p. 44. Em sentido próximo, mas fazendo referência a um “Estado-vigia”, de um lado, e a um “Estado Keynesiano”, de outro, JOHN BRAITHWAITE, The new regulatory state and the transformation of criminology, in British Journal of Criminology, vol. 40, 2000, p. 223.
[3] Cf. IVÓ COCA VILA, ob. cit., p. 45-46, e RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA e EDUARDO SAAD-DINIZ, Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção, São Paulo, Saraiva, 2015, p. 68-69.
[4] IVÓ COCA VILA, ob. cit., p. 46.
[5] Cf. IVÓ COCA VILA, ob. cit., p. 47-48. No Brasil, sem razão, a nosso ver, nota-se, ainda, certa resistência ao envolvimento das empresas na “estratégia reguladora”. Não raro, afirma-se que “não cabe à empresa privada exercer o papel policial de verificar, diuturnamente, qual ou quais funcionários podem ser corruptos”. Com relação à autorregulação, olvidando o contexto exposto em nosso texto, simplesmente se assevera que “o Estado (…) empurra a sua obrigação de controlar a corrupção para as pessoas jurídicas de direito privado, assumindo o papel (facílimo) de fiscalizador da conduta alheia e distribuidor da punição” (GUILHERME DE SOUZA NUCCI, Corrupção e anticorrupção, Rio de Janeiro, Forense, 2015, p. 106).
[6] Para maiores considerações sobre meta-regulação e autorregulação pura, ver IVÓ COCA VILA, ob. cit., p. 48 e ss.
[7] Apud IVÓ COCA VILA, ob. cit., p. 50. Em termos próximos, RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA, ob. cit., p. 69.
[8] RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA, ob. cit., p. 26-27, sem discordar do que vai no texto (pelo contrário), lembra ainda que o compliance também se insere numa tendência de “mudança de um Direito Penal que cuidava de danos ex post, para um Direito Penal que cuida de prevenções ex ante, ou de um Direito Penal repressivo para um Direito Penal preventivo”. Afora a tendência de surgimento de “imposições internacionais” (soft law), buscando uniformidade no tratamento de certos institutos, as quais poderiam ser vistas como novas fontes do próprio direito penal.
[9] Uma contextualização diferente, quiçá complementar à levada a efeito em nosso trabalho, pode ser encontrada em ADÁN NIETO MARTÍN, El programa político-criminal del corporate goverment: derecho penal de la empresa y gobierno corporativo, in Revista Aranzadi de derecho y processo penal, Navarra, n. 11, 2004, p. 264 e ss. De acordo com o autor espanhol, o instituto do compliance constitui apenas um dos vetores de atuação do “programa político-criminal do governo corporativo”, que, por sua vez, insere-se num contexto social e político ainda mais amplo, de globalização e americanização, especialmente do mercado financeiro (El programa político-criminal…, cit., p. 273 e ss.).
[10] Para uma visão mais cética do instituto do compliance, ver WILLIAM S. LAUFER, Ilusões de “compliance” e governança, in Tendências em governança corporativa e compliance, Eduardo Saad-Diniz, Pedro Podboi Adachi e Juliana Oliveira Domingues (Orgs.), Editora LiberArs, São Paulo, 2016, p. 13 e ss. O autor, em breve síntese, insere as ideias de governança e compliance no contexto de um “movimento” – fracassado, para ele – iniciado nos EUA em meados da década de 1990. Ao final, conclui existir um “conto da governança” e um “conto do compliance”. E afirma ter “falido” o “movimento da boa cidadania corporativa” (ob. cit., p. 25). Uma visão auspiciosa, por outro lado, é apresentada por ULRICH SIEBER e MARC ENGELHART, Compliance Programs for the Prevention of Economic Crimes. An Empirical Survey of German Companies. Freiburg i.Br: Max-Planck-Institut, 2014, p. 02.
[11] Considerações sobre a lei anticorrupção das pessoas jurídicas, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 336.
[12] No mesmo equívoco parece incorrer IVÓ COCA VILA, ob. cit., p. 68 e ss., quando passa a sustentar que o regime jurídico do compliance, em Espanha, nada tem que ver com autorregulação.
*Gabriel Marson Junqueira, promotor de Justiça do Estado de São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. Autor do livro A Prevenção da Corrupção na Administração Pública, pela Editora D’Plácido
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
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