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Democracia da mentira: só vale se meu candidato vencer

Passada a eleição, precisamos erguer a bandeira branca da paz e darmos as mãos em prol de um único país, que congregue todos e todas.


Roberto Livianu, O Estado de S.Paulo 07 de novembro de 2022 | 03h00


Alimentos apodreceram, oxigênio não chegou aos hospitais, medicamentos não foram fornecidos a doentes, transplantes de órgãos foram inviabilizados. Dezenas de negócios perdidos, shows e viagens cancelados – vida deixou de ser vivida.


Em Mirassol (SP), após ser agredido, um motorista assustado acelerou desesperado e atropelou 16 golpistas que bloqueavam uma das centenas das rodovias do País, obstruindo a passagem de seu veículo. Muitas das pessoas atingidas trajavam amarelo e outras usavam como manto a bandeira nacional, como se isso as blindasse, permitindo ultrajes aos valores democráticos. Em Santa Catarina, usaram crianças como escudos bizarros nos bloqueios.


Centenas perfiladas cantaram o Hino Nacional de braço esticado, diante do Regimento de Cavalaria em São Miguel do Oeste (SC), reproduzindo o Sieg Heil nazista, que ensejou reações indignadas das Embaixadas de Israel e Alemanha. Em diversas outras repartições das Forças Armadas do País, milhares de “manifestantes” pediram intervenção militar com violação às regras constitucionais do Estado de Direito, pois o candidato que apoiavam perdeu no voto. Do lado militar, a madura reação a tal estapafúrdia e orquestrada iniciativa foi o mais constrangedor e geral desprezo.


Milhares de pessoas em todo o País foram rápida e habilmente manipuladas, evidenciando-se disciplina de organização, com o uso eficiente da tecnologia dos aplicativos de mensagens. Diziam ser democratas, mas em modelo pitoresco e singular (para não dizer grotesco), que só valeria se o vencedor fosse seu candidato. Não pareciam saber lidar com frustrações.


Uma catarse, incluindo o culto à quebra da ordem jurídica – os seguidores da seita da antidemocracia. Em suas faixas, referências ofensivas ao vencedor, supostamente beneficiado por manobras escusas. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é transformado em demônio, por ter atuado na contenção de fake news bolsonaristas.


Num passe de mágica, o demônio vira anjo ao determinar a retirada de vídeos das redes sociais de Lula, referentes ao episódio “pintou um clima”, atribuindo exageradamente a Bolsonaro a conotação de pedófilo. O mesmo Alexandre de Moraes, que o presidente e seus seguidores tratavam sem qualquer respeito, repentinamente foi reclassificado e teve sua decisão lida por Bolsonaro em debate com ênfase, como ícone da prevalência da justiça. Isso evidencia a falta de coerência e que tudo não passa de construção oportunista de narrativas, que literalmente tomou o lugar das verdades nos tempos de hoje.


Assistindo a todos esses acontecimentos, longe do povo e até do “cercadinho”, no conforto palaciano do Alvorada, literalmente de camarote, o presidente sabia que o País ardia em chamas, com prejuízos bilionários à economia, mas manteve a frieza e a insensibilidade que o notabilizaram à época da pandemia.


Lembrou a atitude de Nero, levando nada menos que 44 horas para dignar-se a fazer pronunciamento de 123 segundos, desacompanhado da primeira-dama – presente em toda a campanha. Não admitiu a derrota e não disse o nome do vencedor, praticamente apenas agradeceu pelos votos recebidos, não se portando como estadista nem como democrata.


Percebe-se o valor e o caráter das pessoas pela forma humilde como se comportam diante dos êxitos e dos fracassos. É necessário saber ganhar e perder. Respeitar o povo brasileiro e sair de cabeça erguida, mesmo sem foro privilegiado, tendo espírito democrático, com respeito à vontade da maioria, o que Bolsonaro quase não evidencia.


Com palavras ambíguas, não gerou a desobstrução das rodovias, precisando voltar a se comunicar em vídeo no dia seguinte. O diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi surpreendido pedindo votos ostensivamente para o presidente.


A partir disso, cenas grotescas passaram a circular com naturalidade, como as de policiais batendo continência para baderneiros golpistas, ao invés de cumprirem o dever de desobstruir as vias. Cabe perguntar: por que os caminhões conduzidos por aqueles que foram multados não foram apreendidos pela Polícia? Se o protesto reunisse pobres em torno de pauta social legítima, demoraria tanto tempo para ser reprimido?


As torcidas organizadas do Atlético Mineiro, do Palmeiras e do Corinthians foram mais eficientes que a Polícia Rodoviária Federal. Não tomaram conhecimento das barreiras e sua perseverança e foco para chegar aos estádios para acompanhar seus times do coração evidenciaram que o apoio daquelas pessoas ao presidente, em verdade, é pouco significativo, sendo facilmente batido pela vontade da torcida de ver em campo seu time de futebol. Por três vezes isso se reafirmou.


Em duas semanas terá início a Copa do Mundo do Catar, em que a seleção brasileira de futebol estará em campo nos enchendo de orgulho. Temos o direito de vestir a amarelinha sem sermos rotulados, até porque essa vestimenta e essas cores não pertencem a qualquer grupo político. Da mesma maneira, não é plausível que não se possa usar uma roupa vermelha sem haver estigmatização esquerdizante. Passada a eleição, precisamos erguer a bandeira branca da paz e darmos as mãos em prol de um único país, que congregue todos e todas.

*

PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’


Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)


Leia a matéria acessando o link abaixo no Estadão:


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