Por Guilherme France*
22/02/2023 | 05h00
A corrupção é, por sua própria natureza, um crime de difícil detecção. Por isso, a realização de denúncias por parte de testemunhas é uma das principais formas pelas quais autoridades descobrem este tipo de irregularidade e abrem investigações. Incentivar, de diversas formas, a realização de denúncias é, portanto, um componente essencial de políticas anticorrupção, não só para reduzir o alcance e impacto de esquemas de corrupção já instalados, mas também para criar um ambiente dissuasório para futuros criminosos.
Dezenas de países estabeleceram, nas últimas décadas, obrigações legais para que indivíduos denunciem crimes e/ou corrupção que testemunharam. As previsões variam significativamente, mas as penalidades geralmente incluem prisão e multas. Especialmente no leste europeu, diversos países estabeleceram tipos penais, com altas penas de prisão, que alcançam pessoas que deixam de denunciar esquemas de corrupção de que tomem conhecimento.
Enquanto, em alguns casos, essas obrigações são aplicáveis aos cidadãos em geral, em outros, as disposições referem-se apenas aos funcionários públicos. Referências específicas à corrupção nem sempre estão presentes; em muitos casos, a legislação exige que os indivíduos denunciem qualquer tipo de irregularidade testemunhada, o que inclui corrupção, mas também outros tipos de crimes e contravenções.
Ao estabelecer a obrigação de denunciar, uma preocupação que surge é se os indivíduos que cumprem essas obrigações estarão protegidos de qualquer retaliação que possa ocorrer em decorrência de sua divulgação. Também é importante entender se essas obrigações fazem parte de um conjunto mais amplo de políticas destinadas a incentivar a denúncia ou se são disposições isoladas, hipótese na qual terão eficácia limitada no aumento da denúncia e detecção de corrupção.
No Brasil, inexiste previsão específica, no âmbito do Direito Penal, estabelecendo um dever de denunciar casos de corrupção. A Convenção Interamericana contra a Corrupção, ratificada pelo Brasil, prevê que normas de conduta para funcionários públicos devem incluir "medidas e sistemas para exigir dos funcionários públicos que informem as autoridades competentes dos atos de corrupção nas funções públicas de que tenham conhecimento" (art. III, 1).
Tal preceito não foi, entretanto, internalizado domesticamente. A Lei nº 8.112, de 1990, ao detalhar as obrigações dos servidores públicos (art. 116 ) não faz qualquer referência a um dever de denunciar casos de corrupção ou outras formas de irregularidade.
No nível infralegal, o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, instituído pelo Decreto nº 1.171, de 1994, prevê que é dever fundamental do servidor público "resistir a todas as pressões de superiores hierárquicos, de contratantes, interessados e outros que visem obter quaisquer favores, benesses ou vantagens indevidas em decorrência de ações imorais, ilegais ou aéticas e denunciá-las". Trata-se, no entanto, de obrigação limitada a um conjunto de circunstâncias bastante mais restrito. O Código de Conduta da Alta Administração Federal, por sua vez, não faz qualquer referência a tal obrigação.
Esta discussão ganhou contornos concretos com a investigação sobre o eventual cometimento de prevaricação pelo ex-Presidente Bolsonaro no caso Covaxin. Tendo sido informado de suspeitas de corrupção na compra de vacinas, abriu-se inquérito para averiguar se, ao não denunciar as irregularidades às autoridades competentes, o ex-Presidente teria prevaricado. A conclusão alcançada pela Polícia Federal, e endossada pelo Procurador-Geral da República, é de que não haveria "dever funcional do Presidente da República (...) de comunicar eventuais irregularidades de que tinha conhecimento - e das quais não faça parte como coautor ou partícipe - aos órgãos de investigação". Isso porque o art. 84 da Constituição Federal, ao listar os deveres do Presidente da República, não prevê este dever funcional específico.
A ausência de uma obrigação legal de denunciar irregularidades abre espaço para a interpretação de que denunciar (ou não) é uma escolha livre dos indivíduos ou dos funcionários públicos. E, como afirmou a PGR, "não há que se falar em prevaricação quando o funcionário tem a discricionariedade na escolha da conduta a tomar no exercício de suas funções".
Dessa forma, a instituição desta obrigação de denunciar - ainda que sem uma penalidade prevista especificamente para a sua violação - teria o condão de permitir a aplicação do tipo penal da prevaricação aos casos em que funcionários públicos retardassem ou deixassem de praticar indevidamente ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. De forma geral, poderia também contribuir para a conscientização sobre a importância de se denunciar esquemas de corrupção a autoridades competentes.
Todavia, deve-se atentar para o risco de uma confiança excessiva em leis criminais gerais que obrigam os indivíduos a denunciar infrações criminais como se isso os protegesse automaticamente de retaliação. A existência de um dever de denúncia não, como aponta a Transparência Internacional, é uma alternativa satisfatória a uma política adequada de incentivos a denúncias e medidas de proteção para denunciantes.
Há uma contradição flagrante em países ou organizações onde indivíduos ou funcionários públicos têm a obrigação de denunciar casos de corrupção, mas as medidas para proteger os denunciantes são insuficientes ou inadequadas. Por isso, instituir a obrigação de denunciar a corrupção, ainda que relevante para aumentar a detecção deste tipo de irregularidade, não é suficiente, nem substitui o fortalecimento de mecanismos que incentivem e protejam pessoas - funcionários públicos ou não - que realizem denúncias sobre corrupção.
*Guilherme France é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas. Pesquisador e consultor de organizações internacionais e ONGs em temas relacionados à transparência, anticorrupção e integridade
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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