Roberto Livianu*
02 de setembro de 2022 | 05h00
Em inglês, follow the money! Siga o dinheiro! Esta expressão sintetiza com rara precisão um verdadeiro mantra para quem se preocupa com a angústia do crime transnacional da lavagem de dinheiro, em relação ao qual o Brasil felizmente conta com lei de última geração, referência moderna para o mundo no enfrentamento da criminalidade do colarinho branco.
Os estudiosos do Direito Penal moderno consideram nossa lei moderna por não restringir o universo dos crimes antecedentes, aos quais a lavagem se vincula e que se tornou muito debatida, quando há alguns anos foram encontrados 51 milhões em dinheiro num apartamento em Salvador, em poder do Deputado Geddel Vieira Lima. Ele foi processado e condenado.
Não restringir os crimes antecedentes significa que a caracterização do crime de lavagem admite como crime antecedente o tráfico de entorpecentes, o roubo, o furto, mas até mesmo o crime de homicídio.
O caso Geddel causou grande perplexidade para a opinião pública, obviamente pelo volume gigantesco de dinheiro, pois foi a maior apreensão de dinheiro em espécie da história relacionada a crime. Mas, penso eu, não apenas por isto. É que a cada dia que passa o dinheiro vivo é menos utilizado no Brasil e no mundo.
Há previsões no sentido de que, nos próximos anos o dinheiro em papel moeda deixe de ser totalmente utilizado. Já há notícias no sentido de algumas cidades da Suécia em que no comércio não mais se usa o dinheiro no dia-dia.
A bancarização é processo perceptível a olho nu, progressivo. Os bancos oferecem aparato de segurança digital e, obviamente, ao se depositar valores no banco, as pessoas estão se prevenindo em relação a assaltos. Cada vez menos pessoas circulam com dinheiro – apenas com o numerário estritamente necessário.
Percebe-se que até na feira, na quitanda, no armazém, no comércio de rua, todos já têm suas respectivas maquininhas, aceitam PIX e não estabelecem barreiras restringindo seus negócios ao dinheiro em moeda corrente. As pessoas que nada têm a esconder fazem negócios usando o ambiente bancário, rastreável. A consequência disto é a possibilidade de fiscalizar estas operações.
Além disto, percebe-se que a tendência internacional é a de retirar de circulação as notas de valores mais altos, como fez o Banco Central Europeu, em relação às cédulas de quinhentos euros, já que se usa o papel moeda cada vez menos e desta forma se previne a corrupção e a lavagem de dinheiro.
Infelizmente o Brasil não caminhou nesta direção e, apesar de resistências e aconselhamentos de organizações da sociedade civil em direção oposta. O Banco Central lançou a nova nota de duzentos reais, argumentando que em virtude da pandemia seria essencial para recompor o meio circulante. Mas até hoje as notas que se disse serem essenciais simplesmente não foram colocadas em circulação.
Aliás, o povo mais humilde só soube, de fato, da circulação destas novas notas pelo noticiário televisivo, quando encontradas em boa quantidade no interior das nádegas do Senador Chico Rodrigues (R$33.000,00), vice-líder do Governo Bolsonaro, sendo certo que até hoje este Senador não foi punido pelo Conselho de Ética do Senado. Chegamos a ter de lidar com placa de lanchonete anunciando que se aceitaria no estabelecimento pagamento em dinheiro, desde que proveniente de carteiras.
A partir destas premissas, é bastante fácil de entender por que é cada dia mais raro o uso do dinheiro em espécie para tudo. Dificilmente alguém sacará dois mil reais do bolso em cédulas para pagar a conta do supermercado, do petshop ou do restaurante. É permitido, mas anormal, atípico, estranho, bem obscuro, inseguro e suspeito.
Que se poderia dizer então a respeito da compra de um imóvel que envolve a entrega de, por exemplo dois milhões de reais, que podem demandar até cinco enormes mochilas para transportar as cédulas, dependendo do valor das respectivas cédulas? Para que correr tamanho risco de roubo?
Seria permitido comprar um imóvel e pagar em dinheiro? Sim, mas extremamente suspeito. Por que evitar o rastreio da operação pelos bancos? O que se estaria pretendendo ocultar da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), antiga COAF?
O que se poderia dizer então em relação à hipótese do adquirente X, agente público, que fez inúmeras aquisições de imóveis ao longo dos anos, sempre pagando em dinheiro vivo? E se acrescentarmos ainda o fato que em suas respectivas declarações de renda anuais não consta que dispunha dos valores usados para a aquisição dos imóveis, em numerário vivo?
Parece haver algo de podre no reino da Dinamarca, como se diz. Especialmente porque nesta hipótese, dificultou-se qualquer apuração intencionalmente, porque é cortado o fluxo do dinheiro até as transações imobiliárias. Não se pode seguir o dinheiro em virtude da manobra obscura, mas se deve usar a lei de lavagem de dinheiro assim como a lei de improbidade, que pune o enriquecimento ilícito, quando um agente público apresenta riqueza incompatível com seus vencimentos.
O que, infelizmente, obstrui nosso caminho desde sempre é a gigantesca impunidade e o sistema de privilégios na tramitação jurídica, que bloqueia a responsabilização dos violadores da lei e das regras éticas, que, cinicamente se limitam a afirmar em falso que estão agindo dentro da lei, com o dinheiro na mão fazendo vendaval.
*Roberto Livianu, procurador de Justiça em São Paulo, doutor em Direito Penal pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac).
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