ROBERTO LIVIANU 11 JULHO 2023 | 2min de leitura
O brilho dos cristais ofusca… o fumegar dos canapés finos enche a sala de cheiros deliciosos. Cubos de gelo quebram o silêncio antes da queda livre do uísque envelhecido 12 anos na prestigiada celebração do salão chique da capital gaúcha.
As mulheres desfilam seus melhores vestidos de festa no tapete elegante, sem poupar brilhos; os homens, de terno e gravata, conversas girando pela política com pitadas coadjuvantes de futebol –sinal dos novos tempos.
Mas as maiores atenções estão, sem dúvida, voltadas à sua majestade, o vaidoso homenageado, depois de 35 anos de carreira no serviço público. Terno marrom, brilhantina nos poucos cabelos supervalorizados, lenço combinando com a gravata dourada, pança enfiada à força na cinta elástica, graxa atualizada no sapato preto envernizado e sorrisos abundantes até o rosto sentir cãimbra.
Muitos não consideravam a carreira de Pedro Ernesto elogiável, mas ninguém dispensa uma requintada boca livre. E é sempre bom estar perto de quem tem poder. As coisas são assim e inexoravelmente estão fadadas a se manter dessa maneira no mundo mágico da hipocrisia pois, como diz a música, “é preciso saber viver”…e sobreviver.
A festa celebrava a inacreditável inauguração do retrato de Pedro Ernesto para a galeria de ex-presidentes do órgão estadual comandado por Pedro Ernesto, com um detalhe: em pleno exercício da função.
Há muitos anos, é proibido por lei dar nome a ruas ou monumentos públicos de pessoas públicas vivas. E dentro da mesma lógica, retratos em galerias sempre foram descerrados ao fim de mandatos.
Ou melhor, quase sempre, pensei, lembrando-me de Sinhozinho Malta e Viúva Porcina na fictícia Asa Branca, de “Roque Santeiro”; Sucupira e Odorico Paraguaçu, Tibério e “Saramandaia”. Lembrei do impagável Justo Veríssimo, personagem de Chico Anysio, que naturalizava a corrupção.
Quando chegou o convite para a festa, na verdade, levei um susto, porque nunca soube de algo tão surreal –inaugurar foto em galeria de ex-presidentes de alguém que ainda preside o órgão. O que justificaria tal atitude? Gesto de tresloucada vaidade, desprezando a proibição constitucional à impessoalidade? Pressa exagerada, explicada pela instantaneidade existencial da modernidade líquida de Bauman?
Não seria o suficiente, pensei com meus botões. Havia algo a mais, pois o preço a ser pago pelas críticas que viriam –em decorrência da inadequada atitude do ponto de vista ético, moral, jurídico e republicano– precisaria compensar.
Bingo: tinha encontrado a resposta ao enigma de polichinelo. Era o pavor do que poderia acabar acontecendo depois que ele deixasse o cargo –o medo de que seu sucessor ou sucessores jamais instalassem o retrato, o que não seria descabido, dada sua errática trajetória.
Ele queria garantir sua página na história, para evitar que não o fizessem, sem perceber que o tiro saía pela culatra. Que a prematura eternização pretendida, de forma abusiva e miserável, faria com que todo seu legado fosse justamente embalado por uma atitude de truculência oportunista e imoral, que sequer o imunizaria do risco de sumiço da foto, na calada de uma noite qualquer…
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