ROBERTO LIVIANU 05 FEVEREIRO 2024 | 4min de leitura
Até a Quarta de Cinzas, viveremos a catarse coletiva, estaremos sob efeito de anestésico social, imperando a folia, que traz junto os arrastões de celulares e os assédios. Em algum momento decretou-se que o ano só começa após o carnaval e que, por causa da leseira geral que toma conta da República desde meados de dezembro até meados de fevereiro em âmbitos público, político e em alguns outros segmentos, largamos dois meses atrás na ultracompetição global.
Admiro a majestosa beleza dos desfiles, o reluzir das fantasias, os sambas que grudam como chiclete, a cadência, sincronicidade e evolução perfeita das alas, a bateria cuja batida comove. Os corpos esculturais que bailam incansavelmente, a empolgação e vitalidade dos foliões nos blocos, a criatividade dos carros alegóricos – essa riqueza toda compõe o patrimônio cultural nacional, do qual alguns se apropriam ilicitamente. Este submundo movimenta cifras multimilionárias, também provenientes do erário, com desfiles pela televisão aberta. Mas há aí substancioso interesse público.
Como são escolhidos os dirigentes das escolas de samba, mestre-sala, porta-bandeira, rainha da bateria, destaques, samba-enredo? Não existem regras claras, não há compliance, não há transparência nem accountability. Não existe código de governança no mundo do carnaval, onde o coronelismo clientelista desde sempre deu as cartas e essa sempre foi a única regra do jogo. Não se prestam contas com clareza para a sociedade sobre os recursos financeiros recebidos, sobre governança, sobre as escolhas, sobre coisa alguma.
Alguma vez você já se perguntou quem financia toda esta profusão de brilhos e cores, tendo em vista que a modesta paga de alguns passistas e os recursos provenientes do patrimônio público são evidentemente insuficientes diante dos custos milionários dos desfiles? A confecção das fantasias, dos carros alegóricos, a contratação do pessoal, a logística do carnaval, enfim, tudo isso é extremamente oneroso.
A ex-juíza Denise Frossard, em memoráveis julgamentos no Rio de Janeiro, condenou criminalmente os banqueiros do jogo do bicho Castor de Andrade, Turcão, Miro, Anísio e outros, ficando patente que o carnaval sempre foi controlado pelos gângsteres do mundo da contravenção, que foram historicamente responsabilizados pela corajosa magistrada.
Hoje, os respectivos herdeiros lhes sucederam e continuam a exercer o mesmo poder que seus pais detinham, mantendo-se patrocinadores do carnaval, havendo semelhantes correlações em processos criminais que envolveram o bicheiro paulista Ivo Noal. Mais recentemente, surgiram indicativos de estreitas ligações entre organizações criminosas e escolas de samba.
Aliás, vale lembrar, há poucos meses a Escola de Samba União Cruzmaltina, ligada ao Vasco da Gama, cogitou homenagear no carnaval deste ano em seu desfile o ex-governador Sérgio Cabral, do alto de seus mais de 400 anos de condenação por corrupção em 23 processos, sendo réu confesso.
Ou seja, a escola de samba quis reverenciar a trajetória de alguém que confessou ter privado toda uma geração do acesso à educação pública, que desviou um caminhão de recursos da saúde pública, do saneamento básico, da moradia, que agudizou a desigualdade social fluminense. Lembremos que Cabral foi solto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), saiu pela porta da frente, por motivos que novamente nos fazem pensar que há muito mais entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.
Felizmente, nem tudo está perdido, pois poucas semanas após contundente alerta publicado por mim nesta mesma coluna, a escola de samba desistiu da estapafúrdia ideia, restabelecendo-se o mínimo bom senso.
Os desfiles das escolas de samba no eixo Rio-São Paulo, o Galo da Madrugada, no Recife, os bonecos de Olinda, os blocos de Salvador são apenas alguns poucos exemplos mais conhecidos das festanças de carnaval, depois das quais se pode romper a letargia coletiva. E vamos lembrar os períodos de festas juninas, que também paralisam o Congresso Nacional.
Muitos homens vêm ao Brasil atraídos pelo turismo sexual em época de carnaval, inclusive consumindo prostituição infantil e, assim, atentando à luz do dia e na calada da noite contra a dignidade humana. Não podemos nos dar ao luxo de praticamente hibernarmos por períodos tão longos, todos os anos, enquanto metade da população padece sem acesso a saneamento básico, com níveis estratosféricos de desigualdade social e tantos desafios nos campos político, social e econômico.
Tikun Olam se traduz como a existência preocupada com a coletividade, a busca pela prosperidade do mundo. Precisamos nos inspirar no sábio preceito filosófico judeu e repensar nossa responsabilidade existencial, para deixarmos de ser vistos pelo mundo como quem vive eternamente no Baile da Ilha Fiscal.
É maravilhoso festejar e há artistas que brilham durante o carnaval, que devem ser reconhecidos, assim como a riqueza econômica gerada pelos festejos é socialmente importante. Mas não é razoável que setores vitais de um país fiquem paralisados por tanto tempo. Em nenhum outro lugar do mundo é assim – se queremos ser respeitados, urge um reposicionamento e que comecemos a agir com mais seriedade como nação.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’
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