Por Roberto Livianu*
23/05/2023 | 13h05
Imagine você a cena medieval, desumana, grotesca de um indivíduo do qual se esperava que tivesse ido ao estádio para simplesmente torcer pacificamente por seu time do coração. De repente, o sujeito liberta um monstro que parecia aprisionado e começa a berrar como louco, chamando um jogador em campo de macaco, com postura escandalosamente racista.
Isto é algo obviamente absurdo, terrível, inaceitável, ignominioso e incompatível com a civilidade, com a cidadania e com o respeito à dignidade humana. Mas, então imagine milhares de pessoas presentes neste último domingo, no estádio de Mestalla, em Valencia, na Espanha, a partir dos 24 minutos do segundo tempo na partida entre Valencia x Real Madrid.
Pelo simples fato de Vini Jr. levar ao conhecimento do árbitro que havia duas bolas em campo, sincronizadamente começaram a urrar em coro incessante (durante quase oito minutos) a ofensa racista dirigida a ele. Macaco! O intuito era claro e inequívoco de praticar racismo em alto e bom som, em união em prol de prática cruel e coletiva de racismo - parece inacreditável, mas ocorreu em pleno século 21 em plena Espanha, no velho continente.
E se acumulam assim oito reclamações em vão pelo Real Madrid por atitudes desta natureza, implacavelmente sempre dirigidas contra o mesmo indivíduo. E parece claro que a situação vai ganhando escala cada vez maior em virtude da impunidade, que retroalimenta o crime - a total e absoluta omissão das autoridades responsáveis. Nenhuma providência consistente por parte do sistema de justiça, do Ministério Público, nenhuma postura firme por parte de LaLiga ou seu presidente Javier Tebas, a CBF da Espanha.
Ao longo da partida, o clima foi de extrema e absoluta tensão, com marcação cerrada e rispidez extrema nas disputas de jogadas envolvendo especialmente Vini Jr. E tudo vai ficando ainda mais agudo quando ele identifica para o árbitro um dos indivíduos responsáveis pelas ofensas racistas.
Progressivamente, a temperatura do jogo foi subindo em campo, atingindo níveis insuportáveis, até que ao reagir a um mata-leão violento que recebeu de Hugo Duro, jogador da equipe adversária, Vini Jr. atingiu-o no rosto e, após revisão do lance pelo VAR, foi expulso como se nada disto tivesse ocorrido (apenas ele), mesmo após ter sido vítima de todo o massacre racista em campo pela torcida do Valencia.
É bem verdade que depois veio à tona o fato que o responsável pela gestão do VAR manipulou a edição das imagens, não mostrando ao árbitro em campo o lance antecedente (o mata-leão), recortando apenas a reação de Vini Jr. Após se saber da manipulação, houve o afastamento do responsável por ela, mas esta manipulação se soma ao quadro de perseguição racista ao brasileiro.
A cena descrita é de verdadeira carnificina moral contra um ser humano, pelo simples fato de ter a pele negra. E isto vem se repetindo à exaustão, sem atitudes firmes por parte dos responsáveis, assim como das equipes de futebol, que poderiam fechar questão e dar um ultimato nas autoridades. Apesar disto, Vini Jr., que vem se destacando como um jogador de futebol extraordinário, tem demonstrado grande maturidade e coragem, enfrentando os episódios racistas com caráter e de cabeça erguida, um exemplo internacional de dignidade.
Os principais jornais da Espanha estamparam o fato em primeira página, o que evidencia que a mídia está sensível e vigilante, chamando a sociedade espanhola a refletir sobre o tema, mas isto não foi suficiente até agora para gerar as consequências necessárias.
Há alguns anos, quando a violência parecia ter dominado estádios, episódios de extrema gravidade envolvendo torcedores de grupos organizados, como os Hooligans na Inglaterra e torcedores de times como a Lazio da Itália, com ligações com o fascismo, obrigaram a intervenções significativas do poder público para garantir a paz. São apenas alguns exemplos dentre tantos outros - no Brasil se fez a opção pela torcida única como estratégia de minimização de riscos de confronto entre torcidas.
Não nos esqueçamos que é lá na mesma Espanha que ainda são realizadas as seculares touradas, em que os touros são mortos com crueldade para delírio orgástico ensandecido da plateia. A prática se mantém intocada ao longo dos tempos, blindada pelo argumento das razões culturais, como se elas não pudessem ceder à prevalência da civilidade, aos novos valores ESG, em que a ética deve ser priorizada nos planos do meio ambiente, social e de governança.
Depois de termos vivido as tragédias do holocausto nazista, do apartheid sul-africano, a igualdade entre os homens, sem discriminação por sua origem ou cor da pele é patamar civilizatório pretendido e ideal. Mas em muitos lugares e diante de certas circunstâncias ainda não está concretizado, infelizmente.
O mundo precisa gritar em uníssono e exigir posicionamentos, ameaçando impor punições políticas e econômicas graves ao Estado espanhol e às autoridades do esporte naquele país, pela conivência condescendente ao racismo, para que o massacre de Mestalla jamais se repita.
*Roberto Livianu, procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção
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